
O ex-ditador e torturador argentino Rafael Videla foi condenado ontem, aos 85 anos, à prisão perpétua pela execução de 31 presos políticos, em 1976, na cidade de Córdoba. É importante, claro, comemorar – como fazem, neste momento, milhares de argentinos. Sobretudo, porém, é preciso fazer uma ressalva e atentar para o fato de que não se deve esquecer – como a história oficial esqueceu – de que é impossível dissociar os crimes das ditaduras da América Latina de uma estratégia ideológica de implementação de políticas econômicas neoliberais.
Na década de 50, o intervencionismo estatal e o desenvolvimentismo ganharam força nos países do assim chamado Terceiro Mundo. Para tornar os produtos mais acessíveis, os políticos impunham controle de preços; para diminuir a exploração dos trabalhadores, fixavam salários mínimos e legislações trabalhistas; para garantir que todos tivessem acesso à educação, deixavam-na nas mãos do Estado. O caso da América Latina era ainda “pior”: suas políticas econômicas definitivamente começavam a dar uma guinada para a esquerda, o que ficou comprovado, por exemplo, com a chegada ao poder, anos depois, de João Goulart no Brasil e de Salvador Allende no Chile.
Em 1957, o governo dos EUA, junto com o departamento de Economia da Universidade de Chicago – centro do pensamento neoliberal estadounidense –, lançam o que ficou conhecido como “Projeto Chile”. O objetivo era produzir guerrilheiros ideológicos capazes de vencer a batalha de ideias contra os “economistas vermelhos” da América Latina. O programa, depois, foi expandido para outros países latinoamericanos, entre eles Brasil, Argentina e Uruguai. Por meio de convênios acadêmicos, a Escola de Chicago passou a financiar estudos de professores, alunos e pesquisadores nos Estados Unidos com os melhores discípulos de Milton Friedman, o guru do capitalismo neoliberal.
Mais tarde conhecidos como “garotos de Chicago”, foram eles que compuseram a maior parte das equipes econômicas dos governos ditatoriais militares do Cone Sul. As transformações econômicas, em geral, eram baseadas em um mesmo tripé: privatização, desregulamentação governamental e cortes profundos nos gastos sociais. Os efeitos, por sua vez, logo foram sentidos pelas populações. No Chile, as crianças não tinham mais leite para tomar nas escolas públicas, já que uma das primeiras medidas de Pinochet foi cortar o programa do leite. Na Argentina, a junta militar subiu o preço das passagens e achatou os salários e os trabalhadores tiveram que acordar mais cedo, para caminhar longas horas até as fábricas, e aumentou o consumo do chá de erva mate, conhecido por reduzir o apetite.
Mas o povo sofria calado, e morria aos suspiros, com medo da repressão que assolava as ruas. Previsões modestas falam em 150 mil torturados e dezenas de milhares de assassinados só no Cone Sul, em um episódio marcante de genocídio político e cultural.
As vozes oficiais justificavam a violência como uma suposta “guerra ao terror” o que hoje já se provou uma grande mentira. Investigações do Senado dos EUA comprovaram que Allende não representava nenhum tipo de ameaça à democracia. Além disso, com relação às forças guerrilheiras, quando os militares assumiram no Uruguai, a oposição dos Tupamaros já havia sido completamente desmantelada; na Argentina, nos seis primeiros meses de ditadura, o grupo de resistência dos Montoneros já havia sido liquidado. A tortura, na realidade, significou uma abertura forçada em meio à população para os choques econômicos – e isso a troco de muitas vidas.
Infelizmente, porém, a ideologia neoliberal acabou sendo absolvida de seus crimes. Em 1976, Friedman ganha o prêmio Nobel de Economia, defendendo, em seu discurso, a disciplina econômica como objetiva, exata e imparcial. No ano seguinte, é a vez da Anistia Internacional levar o Nobel da Paz, principalmente pelas denúncias de abusos dos direitos humanos no Chile e na Argentina. Os dois prêmios, conjugados, eram um veredicto que absolvia o capitalismo neoliberal dos crimes contra a humanidade.
Por um lado, isso se deve à preocupação exagerada da Anistia em permanecer completamente independente no contexto da Guerra Fria. Em seu relatório, não aparece em nenhum momento o envolvimento dos EUA e de corporações que comprovadamente atuaram no sentido de fomentar a repressão – na Argentina, uma fábrica da Ford chegou a abrigar um centro clandestino de tortura. Muito mais que perguntar por que, o documento simplesmente afirmava que. Mas é claro que existem ainda outros motivos para esse descompromisso. Em primeiro lugar porque amigos e parentes de vítimas, que eram quem denunciavam os abusos, tinham medo de falar demais e serem as próximas vítimas, mas, também, porque a principal financiadora do projeto da Anistia era a própria Fundação Ford.
Uma coisa, porém, é certa: no começo da década de 80, no mundo inteiro, não havia um único caso de democracia multipartidária que pendesse inteiramente para o livre mercado.
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