| Crise iniciada com suspeitas sobre enriquecimento de Antonio Palocci (direita) culminou com a posse de Gleisi Hoffman (esqueda) em seu lugar. Na foto, estão o vice Michel Temer, a presidente Dilma e o presidente do Senado, José Sarney |
Edmilson Lopes Jr
De Natal (RN)
De Natal (RN)
Durante a segunda metade dos anos 1980, um pequeno grupo de deputados, comandados pelo baiano João Alves, do então PFL, mandou e desmandou na então poderosa Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados. Esse grupo, que entraria para a história com o impagável apelido de "anões do Orçamento", não alicerçava o seu poder em uma atuação parlamentar propositiva, traduzida em projetos de lei, fiscalização do executivo e discursos consistentes sobre questões fundamentais da vida social. Muito pelo contrário! Para eles, a distância do palco era desejável, pois, assim podiam dar vazão a sua perícia na alocação de recursos para entidades fantasmas e obras de empresas amigas.
Um dia o mundo dos anões ruiu, abalado por denúncias fartamente documentadas. Uma CPI ("do Orçamento") foi criada e quase todos eles foram cassados. Os seus depoimentos, capturados pelas câmeras de TVs, revelaram atores canastrões. Sobre eles caiu toda a indignação moral que vinha como uma onda desde que, dois anos antes, o primeiro Presidente da República fora guindado para fora de seu cargo por um impeachment. As patéticas explicações que deram para o seu rápido enriquecimento foram objetos de escárnio, tanto no palco da CPI quanto nas esquinas do país. Uma ontologia da infâmia nacional, ainda a ser escrita, certamente recolheria a memorável resposta do deputado João Alves a um questionamento sobre o seu rápido enriquecimento: "Deus me ajudou e eu acertei duzentas vezes na loteria".
O fato era verdadeiro, em parte. Como comprovaram as investigações conduzidas pelos parlamentares da CPI do Orçamento, os "anões" usavam prêmios da loteria para "lavar" dinheiro advindo, dentre outras fontes, de entidades fantasmas por eles controladas para as quais destinavam, sem o controle do plenário, emendas orçamentárias.
O "Escândalo do Orçamento" abriu uma caixa de pandora. Nem tudo era apenas farsesco e patético. O estarrecedor assassinato, por pistoleiros a mando do marido, da esposa de um assessor parlamentar ligado aos "anões" deu a esse escândalo um ingrediente de horror. E a descoberta de brinquedos sexuais na casa de uma suposta amante do assessor trouxe para o noticiário de TV o apelo que sempre têm os fatos picantes ligadas ao sexo.
A frase é banal, quase diria brega, mas o fato é que, no ano de 1993, o Brasil perdeu a sua inocência política. Política e obscenidade se mesclaram, a partir de então, para transformar essa mercadoria especial que é o noticiário político em algo interessante para o grande público. Tudo isso contribuiu para que, também no Brasil, ocorresse o fenômeno identificado pelo estudioso da comunicação John B. Thompson como "midiatização da política". Em um de seus textos, Thompson assim o define: "Esse fenômeno moderno do escândalo midiatizado tem uma estrutura dinâmica distinta, que implica a revelação pelos mídias de certas ações ou atividades que situam-se fora do escrutínio do público. Essa revelação expressa transgressão de valores e normas que, tornados visíveis, suscitam expressões públicas de desaprovação e indignação."
Essa política do escândalo abre uma avenida para que os políticos que têm na defesa da moralidade a sua única plataforma possam avançar rapidamente. Até que, em algum momento, os mocinhos sejam apanhados em ações pouco recomendáveis nos espaços "fora do escrutínio do público". Foi assim com os parlamentares do Partido dos Trabalhadores durante toda a década de 1990. Eram eles os campões morais das investigações parlamentares. Até que um dia os holofotes dirigiram-se para os seus atos fora da cena. Aí a política do escândalo cobrou um alto preço.
A midiatização da política implica em uma transformação significativa do espaço público. Vivemos em uma nova realidade. Mesmo atores políticos tarimbados têm revelado dificuldades em apreendê-la. Quais os traços distintivos dessa nova realidade? Reproduzo, no que segue, algumas proposições que esbocei sobre a questão em um artigo escrito para a revista MEDIAÇÕES, publicada pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.
Se resgatarmos um pouco a produção discursiva a respeito dos escândalos políticos brasileiros nas duas últimas décadas, constataremos que foram valores, transversais às classes sociais, que se apresentaram como moduladores da leitura dos acontecimentos feitos ordinariamente pelas pessoas. Poderia sintetizá-los em duas palavras: "verdade" e "transparência". Adianto que esses valores são também "categorias nativas", isto é, formas de apreensão e classificação do mundo que são mobilizadas fartamente pelos próprios atores políticos.
Por "verdade", refiro-me, no caso de personalidades públicas, submetidas ao escrutínio da visibilidade midiatizada, à coerência do personagem apresentado ao público. Essa coerência não se traduz necessariamente em credibilidade, mas necessita ter uma estrutura (quase diria, um "script") plausível. Assim, essa "verdade" não é a negação de toda mentira, mas a não-utilização de recursos discursivos diante dos quais as pessoas percebam que estão sendo deliberadamente trapaceadas.
"Transparência" pareceria coincidir com "verdade", mas remete a outros significados, tais como a realização de atos que possam ser facilmente explicados e assimilados pelas pessoas. Como se pode observar, não estou assumindo aqui que, a priori, "verdade" e "transparência" sejam valores, em si mesmo, positivos. São marcadores relacionais, mobilizados em situações concretas, e, portanto, podem alimentar também processos sociais danosos, especialmente porque tendem a impulsionar, em algumas situações, a desconfiança em relação a atores e processos envolvidos com atividades complexas, que não podem ser aferidas por oposições simplistas. Penso, em particular, nas ações dos membros do judiciário. Mas a apreensão também poderia ser estendida a outros campos sociais, como o científico, para citar apenas mais um exemplo.
Poder-se-ia ainda traduzir "transparência" pela cobrança de que os "jogadores " não sejam "mascarados". Trata-se de rejeitar o jogador/ator com "duas caras". Valor ambíguo, "transparência" expressa também conformismo e preconceito contra os que buscam redefinir o seu lugar no mundo. Por isso mesmo, mobiliza a força social oriunda dos discursos entronizados pelos manuais de auto-ajuda, o que se traduz na consigna: "seja você mesmo!".
Por outro lado, mesmo os atores dotados de autocontrole extremo (algo impossível para qualquer jogador em qualquer campo social), que pareceriam, à primeira vista, habilitados para vencer qualquer prova modulada pelos valores acima identificados, nem sempre tenham garantidas as suas vitórias nos embates ordinários. Como a prova, isto é, o acontecimento no qual os atores em confronto medem-se e medem os seus valores, contém sempre uma grande margem de imprevisibilidade, há sempre a possibilidade de que a "coerência" pretérita seja alguma garantia para enfrentar os testes do presente. Algumas vezes, sói ocorrer todo o contrário: a coerência de ontem, especialmente se mobilizada pelo ator para se legitimar perante o público, pode torná-lo muito mais vulnerável para justificar os deslizes de hoje. É o que ocorre nos dias atuais com muitos dos políticos do PT.
"Jogador mascarado" é um sintagma usado mais fortemente para categorizar os jogadores de futebol, mas traduz também uma gramática mais geral de apreensão das performances das pessoas nas mais diversas esferas da vida social.
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Postar um comentário
-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;