Blog da Boitempo
Por Ruy Braga.
Na primavera de 2010, os principais bancos europeus convenceram a Troica (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) de que o risco do “calote” grego colocava em perigo grande parte de seus balanços. Como consequência, em maio daquele ano foi elaborado um plano que previa cortes nos gastos sociais, demissões de funcionários públicos, reduções das pensões etc. Em troca, a União Europeia emprestaria 110 bilhões de euros para o governo grego.
O suposto “resgate” da Grécia inaugurou um tenso ciclo de negociações entre as autoridades europeias e o governo liderado pelo então primeiro-ministro Geórgios Papandréu cujo acordo, celebrado no dia 26 de outubro de 2011, previa o desconto de 50% da dívida soberana grega. Em contrapartida, o governo grego comprometeu-se em demitir 150.000 funcionários públicos até 2015 (destes, 15.000 apenas este ano), eliminar a negociação salarial coletiva, instituir um imposto especial sobre a moradia (por exemplo, quem tem uma casa de 100 m² em um bairro popular de Atenas pagará cerca de 400 euros de imposto especial) e reduzir em 50% o valor das pensões.
O acordo foi celebrado poucos dias após um milhão de grevistas paralisarem o sistema de transportes urbanos, os hospitais, as escolas, os bancos e a administração pública em todo o país. No dia 20 de outubro, um militante do Partido Comunista Grego foi morto pela polícia em uma manifestação. No dia 28 de outubro, data em que a Grécia celebra a vitória sobre o exército de Mussolini, em 1940, manifestações populares espontâneas voltaram-se contra as autoridades presentes nas paradas oficiais.
O mesmo ciclo de revoltas populares repetiu-se na semana passada durante a greve geral convocada contra o empréstimo de 130 bilhões de euros – dinheiro que não passará nem perto de Atenas, mas garantirá o resgate pelos bancos privados de 50% do valor de face dos títulos gregos – autorizado pela Troica no dia 21 de fevereiro. Este plano ameaça sacrificar uma geração: até 2020, o governo grego, agora liderado pelo ex-vice-presidente do Banco Central Europeu, Lucas Papademos, aceitou drenar todos os excedentes fiscais alcançados às custas de demissões, cortes de aposentadorias, aumentos tributários, desmanche dos serviços públicos e arrocho salarial (25% de corte no valor do salário mínimo), para o pagamento dos credores europeus.
Além disso, as autoridades europeias exigem que a Grécia adie eleições ou extenda indeterminadamente a validade dos mandatos dos atuais parlamentares. Finalmente, a Troica planeja manter uma missão permanente em Atenas a fim de monitorar as contas públicas e supervisionar a execução do acordo. Evidentemente, qualquer semelhança da Grécia com uma colônia de Berlim não é mera coincidência…
Seguindo a teoria econômica padrão, aqueles que defendem o pagamento da dívida grega alegam que os bancos apenas recolhem a poupança pacientemente acumulada por meio do trabalho árduo para financiar investimentos que geram empregos e asseguram o crescimento econômico. Portanto, eles não podem ser penalizados pela irresponsabilidade de governos que gastam muito mais do que deveriam em pensões e serviços públicos.
No entanto, a realidade é muito diferente… O atual sistema financeiro está baseado em operações transnacionais que fundamentalmente objetivam criar capital fictício na forma de crédito. Para simplificar: quanto mais um banco empresta, maior será o seu lucro. No decorrer das últimas décadas, os bancos europeus enredaram-se em uma relação insustentável entre créditos e capitais próprios. Eles estão excessivamente “alavancados”, ou seja, suas garantias tornaram-se insuficientes diante da péssima qualidade de seus ativos.
Neste contexto, governos foram convocados a diluir as perdas da banca por meio da alienação do crédito público. Daí os “sacrifícios” exigido das famílias de trabalhadores pelos planos de austeridade impostos pela Troica: como os países semi-periféricos da eurolândia tem um poder de barganha menor e a atual crise de superprodução capitalista desvaloriza rapidamente a montanha de capital fictício que os bancos alavancaram nas duas últimas décadas, eles são os mais atingidos pela atual crise.
Os ajustes exigidos da Grécia, de Portugal, da Espanha e da Itália servem basicamente para resguardar o capitalismo franco-alemão de uma crise incontrolável, conforme a lógica do atual regime de acumulação neoliberal e financeirizado. Nunca é demais lembrar que os países do sul da Europa desenvolveram um déficit comercial crônico com a Alemanha após adotarem o euro em 2002. Ao longo dos anos 2000, a Grécia transformou-se em um mercado de consumo dos produtos alemães cujas vendas foram em grande medida financiadas pelos bancos de Frankfurt.
Aqui, vale a pergunta: os trabalhadores gregos devem ser sacrificados para proteger os bancos europeus? Além de politicamente ilegítimas, o plano de austeridade promove uma recessão econômica cujos custos sociais são simplesmente inaceitáveis. A alienação do crédito público para bancos que tem nas mãos títulos impagáveis é um crime, não uma solução para a crise. Neste sentido, não há a menor esperança para a juventude e para os trabalhadores gregos que não passe pela imediata suspensão dos acordos com a Troica e pelo não-pagamento da dívida.
Naturalmente, um governo títere liderado por um ex-funcionário do Banco Central Europeu decido a transformar o próprio país em uma colônia de Berlim jamais fará algo semelhante. Por seu lado, as classes trabalhadoras na Grécia já perceberam que seu futuro depende de uma profunda reviravolta política. Aquilo que há alguns anos era considerado simplesmente impensável vai rapidamente impondo-se como uma fronteira incontornável. Os partidos de esquerda e de extrema-esquerda começam a se tornar hegemônicos entre os trabalhadores gregos e a espiral de violência entre os manifestantes e a polícia aumenta dia após dia.
Até o momento, a Troica endureceu o jogo com a Grécia na esperança de transmitir a mensagem apropriada a quem de fato tira o sono dos banqueiros europeus, isto é, a Itália e sua dívida do tamanho do Produto Interno Bruto alemão. Por isso mesmo, o caminho da revolução na Grécia passa por Roma, assim como por Lisboa e por Madri. Enquanto os trabalhadores gregos lutarem isolados, não haverá muita esperança para a Europa. Mas, afinal, talvez a Grécia seja apenas o elo mais frágil da corrente capitalista.
***
Dois livros organizados por Ruy Braga e publicados pela Boitempo já estão à venda em versão eletrônica (ebook): Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (2009, em coorganização com Ricardo Antunes) e Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010, em coorganização com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek). Ambos podem ser comprados na Livraria Cultura e Gato Sabido.
***
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Na primavera de 2010, os principais bancos europeus convenceram a Troica (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) de que o risco do “calote” grego colocava em perigo grande parte de seus balanços. Como consequência, em maio daquele ano foi elaborado um plano que previa cortes nos gastos sociais, demissões de funcionários públicos, reduções das pensões etc. Em troca, a União Europeia emprestaria 110 bilhões de euros para o governo grego.
O suposto “resgate” da Grécia inaugurou um tenso ciclo de negociações entre as autoridades europeias e o governo liderado pelo então primeiro-ministro Geórgios Papandréu cujo acordo, celebrado no dia 26 de outubro de 2011, previa o desconto de 50% da dívida soberana grega. Em contrapartida, o governo grego comprometeu-se em demitir 150.000 funcionários públicos até 2015 (destes, 15.000 apenas este ano), eliminar a negociação salarial coletiva, instituir um imposto especial sobre a moradia (por exemplo, quem tem uma casa de 100 m² em um bairro popular de Atenas pagará cerca de 400 euros de imposto especial) e reduzir em 50% o valor das pensões.
O acordo foi celebrado poucos dias após um milhão de grevistas paralisarem o sistema de transportes urbanos, os hospitais, as escolas, os bancos e a administração pública em todo o país. No dia 20 de outubro, um militante do Partido Comunista Grego foi morto pela polícia em uma manifestação. No dia 28 de outubro, data em que a Grécia celebra a vitória sobre o exército de Mussolini, em 1940, manifestações populares espontâneas voltaram-se contra as autoridades presentes nas paradas oficiais.
O mesmo ciclo de revoltas populares repetiu-se na semana passada durante a greve geral convocada contra o empréstimo de 130 bilhões de euros – dinheiro que não passará nem perto de Atenas, mas garantirá o resgate pelos bancos privados de 50% do valor de face dos títulos gregos – autorizado pela Troica no dia 21 de fevereiro. Este plano ameaça sacrificar uma geração: até 2020, o governo grego, agora liderado pelo ex-vice-presidente do Banco Central Europeu, Lucas Papademos, aceitou drenar todos os excedentes fiscais alcançados às custas de demissões, cortes de aposentadorias, aumentos tributários, desmanche dos serviços públicos e arrocho salarial (25% de corte no valor do salário mínimo), para o pagamento dos credores europeus.
Além disso, as autoridades europeias exigem que a Grécia adie eleições ou extenda indeterminadamente a validade dos mandatos dos atuais parlamentares. Finalmente, a Troica planeja manter uma missão permanente em Atenas a fim de monitorar as contas públicas e supervisionar a execução do acordo. Evidentemente, qualquer semelhança da Grécia com uma colônia de Berlim não é mera coincidência…
Seguindo a teoria econômica padrão, aqueles que defendem o pagamento da dívida grega alegam que os bancos apenas recolhem a poupança pacientemente acumulada por meio do trabalho árduo para financiar investimentos que geram empregos e asseguram o crescimento econômico. Portanto, eles não podem ser penalizados pela irresponsabilidade de governos que gastam muito mais do que deveriam em pensões e serviços públicos.
No entanto, a realidade é muito diferente… O atual sistema financeiro está baseado em operações transnacionais que fundamentalmente objetivam criar capital fictício na forma de crédito. Para simplificar: quanto mais um banco empresta, maior será o seu lucro. No decorrer das últimas décadas, os bancos europeus enredaram-se em uma relação insustentável entre créditos e capitais próprios. Eles estão excessivamente “alavancados”, ou seja, suas garantias tornaram-se insuficientes diante da péssima qualidade de seus ativos.
Neste contexto, governos foram convocados a diluir as perdas da banca por meio da alienação do crédito público. Daí os “sacrifícios” exigido das famílias de trabalhadores pelos planos de austeridade impostos pela Troica: como os países semi-periféricos da eurolândia tem um poder de barganha menor e a atual crise de superprodução capitalista desvaloriza rapidamente a montanha de capital fictício que os bancos alavancaram nas duas últimas décadas, eles são os mais atingidos pela atual crise.
Os ajustes exigidos da Grécia, de Portugal, da Espanha e da Itália servem basicamente para resguardar o capitalismo franco-alemão de uma crise incontrolável, conforme a lógica do atual regime de acumulação neoliberal e financeirizado. Nunca é demais lembrar que os países do sul da Europa desenvolveram um déficit comercial crônico com a Alemanha após adotarem o euro em 2002. Ao longo dos anos 2000, a Grécia transformou-se em um mercado de consumo dos produtos alemães cujas vendas foram em grande medida financiadas pelos bancos de Frankfurt.
Aqui, vale a pergunta: os trabalhadores gregos devem ser sacrificados para proteger os bancos europeus? Além de politicamente ilegítimas, o plano de austeridade promove uma recessão econômica cujos custos sociais são simplesmente inaceitáveis. A alienação do crédito público para bancos que tem nas mãos títulos impagáveis é um crime, não uma solução para a crise. Neste sentido, não há a menor esperança para a juventude e para os trabalhadores gregos que não passe pela imediata suspensão dos acordos com a Troica e pelo não-pagamento da dívida.
Naturalmente, um governo títere liderado por um ex-funcionário do Banco Central Europeu decido a transformar o próprio país em uma colônia de Berlim jamais fará algo semelhante. Por seu lado, as classes trabalhadoras na Grécia já perceberam que seu futuro depende de uma profunda reviravolta política. Aquilo que há alguns anos era considerado simplesmente impensável vai rapidamente impondo-se como uma fronteira incontornável. Os partidos de esquerda e de extrema-esquerda começam a se tornar hegemônicos entre os trabalhadores gregos e a espiral de violência entre os manifestantes e a polícia aumenta dia após dia.
Até o momento, a Troica endureceu o jogo com a Grécia na esperança de transmitir a mensagem apropriada a quem de fato tira o sono dos banqueiros europeus, isto é, a Itália e sua dívida do tamanho do Produto Interno Bruto alemão. Por isso mesmo, o caminho da revolução na Grécia passa por Roma, assim como por Lisboa e por Madri. Enquanto os trabalhadores gregos lutarem isolados, não haverá muita esperança para a Europa. Mas, afinal, talvez a Grécia seja apenas o elo mais frágil da corrente capitalista.
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Dois livros organizados por Ruy Braga e publicados pela Boitempo já estão à venda em versão eletrônica (ebook): Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (2009, em coorganização com Ricardo Antunes) e Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010, em coorganização com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek). Ambos podem ser comprados na Livraria Cultura e Gato Sabido.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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