Cinema Secreto: Cinegnose
Ao mesclar ficção científica com romance, “Upside Down” (uma co-produção Canadá/França dirigida pelo argentino Juan Diego Solanas) dá nova roupagem aos mitos da Queda, tão antigos quanto a humanidade: relatos míticos que tentam relacionar a dor e sofrimento à queda da humanidade de um estado de pureza e inocência. Em um engenhoso roteiro, Solanas constrói uma versão literal da Queda ao criar um universo onde a Lei da Gravidade ao mesmo tempo une e separa dois planetas que não possuem céu ou horizontes, mas apenas a versão invertida da sua própria sociedade: o opulento mundo “de cima” que sempre faz lembrar a pobreza do mundo “de baixo”. Mas um amor proibido desafiará a gigantesca corporação que mantém essa ordem através da exploração da energia e dos meios de comunicação.

Os mitos da Queda são tão antigos quanto a história humana.  Das tradições das religiões abraâmicas (que se referem a um estado de transição humana da inocência e obediência a Deus para um estado de culpa e pecado) às heresias gnósticas (a Queda como uma catástrofe de dimensão cósmica da qual o homem tenta se libertar), são relatos que tentam explicar a origem de tanta dor e sofrimento humanos que teria iniciado em algum momento posterior a Criação.

A esse mito associa-se o de uma “Era Dourada” derivada da mitologia grega e de diversas lendas que via o início da humanidade como um estado ideal quando o gênero humano era puro e imortal. Isso criou o arquétipo do “mito das origens” presente em obras como a do filósofo francês Rosseau que vai, por exemplo, influenciar teorias psicopedagógicas: a infância como um momento de feliz  espontaneidade e pureza que será perdida na entrada da fase adulta.

Pois o filme “Upside Down”, uma coprodução Canadá/França dirigido pelo argentino Juan Diego Solanas, vai não só se inspirar nessas fontes míticas como também vai dar uma nova roupagem, dessa vez literal a essa “Queda” – associá-la às leis gravitacionais através de um engenhoso roteiro que parte das seguintes premissas:


a) Há muito tempo atrás dois planetas se aproximaram tanto que quase se tocaram, de tal maneira que os habitantes de um planeta conseguem ver a superfície do outro planeta com seus habitantes, prédios, montanhas e nuvens. São planetas gêmeos que juntos gravitam em torno do Sol;
b) Cada planeta tem suas próprias leis gravitacionais: toda matéria é puxada pela força da gravidade do mundo a que pertence e não do outro;
c) Um objeto pesado pode ser transportado usando a matéria do mundo oposto. É o que se chama “matéria invertida” que se transforma em uma preciosa fonte de energia;
d) A matéria em contato com matéria invertida queima após algumas horas;

Dessas leis físicas surgiram mundos desiguais baseados na exploração e dominação: o planeta “de cima” é controlado por uma espécie de utopia corporativa que produz riqueza e bem estar para seus habitantes, enquanto o planeta “de baixo” vive em um ambiente distópico de pobreza e crise energética. O planeta “de cima” explora o petróleo barato do mundo inferior para depois revendê-lo a preço exorbitante enquanto, para sobreviver, os “de baixo” traficam matéria invertida para aquecer clandestinamente suas casas.

É terminantemente proibido haver comunicação das pessoas entre os mundos sob risco de morte sob um pesado esquema de vigilância e controle. A única exceção é no interior de uma torre que faz o ponto de contato entre os planetas de uma corporação chamada Transworld onde em gigantescos escritórios invertidos funcionários de ambos os mundos gerenciam o sistema político e econômico e criam programas de TV para controle ideológico principalmente do mundo “de baixo”, fonte de mão de obra e energia baratas.

Mas um amor que surge na infância entre habitantes dos mundos opostos desafiará as leis gravitacionais que regem aquela ordem injusta. Aqui a ficção científica se encontrará com o romance. Adam (Jim Sturguess) e Eve (Kirsten Dunst) se conhecem em uma infância idílica: ambos vão a uma região montanhosa cujos picos quase se encontram e se apaixonam. As imagens deles brincando e olhando um para o outro de cabeça para baixo com um oceano de nuvens intrincado entre eles é algo de inteiramente novo em termos de imaginário cinematográfico – embora muitas sequências de “Upside Down” façam lembrar o filme “A Origem” (Inception, 2010).

Um amor proibido que é logo descoberto: atiradores acertam a corda que fazia Eve descer, fazendo-a cair de volta para o seu mundo. Ela cai e perde a consciência e a memória daqueles momentos felizes. Mais tarde, Adam já adulto revê seu amor de infância na TV participando de quiz show: ela agora é designer gráfico da Transworld-Publicidade, uma divisão da corporação Transworld. Adam fará de tudo para reencontrá-la e reviver o amor perdido e proibido da infância.

O mito da Queda de Sophia


O roteiro de “Upside Down” faz uma interessante aproximação simbólica entre o mito da Queda e a lei da gravidade na Física. Em postagem anterior discutíamos a aproximação entre a Filosofia e as contradições da Física (veja links abaixo): entre atomismo versus monismo e livre-arbítrio versus necessidade. O princípio unificador universal das leis gravitacionais na física newtoniana (que confina e organiza o movimento inercial das partículas independentes) corresponderia ao conflito entre liberdade e necessidade na Filosofia.


O amor entre Adam e Eve (liberdade) terá que enfrentar a necessidade das leis da Física que não só organizam aqueles dois mundos como resultou num cosmos injusto política e economicamente.

Embora os nomes dos personagens (Adão e Eva) façam uma associação com o mito da Queda abraâmico (Paraíso-desobediência-pecado-Queda), o elemento da perda da memória de Eve após uma queda e a corporação Transworld como um demiurgo que aprisiona e explora energia dos mundos conecta essencialmente à mitologia gnóstica da Queda de Sophia.

A presença do Mito de Sophia no Cinema


Um dos mais importantes aeonsna mitologia gnóstica, essa personagem é explorada no cinema em três aspectos: como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo (em “Upside Down” por meio da amnésia), como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose (seu amor despertará em Adam a necessidade de ruptura da ordem injusta) e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação – evitando criar um spoiler, Eve dará uma contribuição final à revolução dos dois mundos.

Dentro das narrativas gnósticas, a história de Sophia é a história de um exílio que tem a ver com a própria Criação.

Tendo residido nas elevadas alturas da Plenitude (Pleroma), ela deixou sua morada e decaiu nos reinos do caos e da alienação. Tendo ficada afastada da Luz do Pai Primordial, a viu refletida na profundeza do Abismo. À distância, pensou que fosse a Luz primordial do Pai. Para lá viajou, afastando-se cada vez mais nas profundezas até que foi finalmente interceptada pelo Limite (Horos).

A partir desse ponto ocorre uma profunda divisão na natureza de Sophia que corresponderá, a um importante arquétipo da personalidade humana, bastante explorada no tema da busca da gnose pelos protagonistas dos filmes gnósticos: Seu ser superior, seu núcleo essencial, tornou-se iluminado e ascendeu misticamente de volta à Plenitude, enquanto o seu ser inferior permanece na alienação. Assim como Sophia, estamos divididos em dois: a nossa personalidade humana habita na confusão e alienação, enquanto o nosso ser eterno partilha do todo e da sabedoria.

Distante das suas origens e isolada, produz também uma forma híbrida de consciência: o Demiurgo. Esse verdadeiro filho bastardo de Sophia começa a construir o seu reino, formado por sete esferas, presidido, cada um deles, por um Arconte do Tempo, regendo o destino e ajudando a aprisionar os espíritos. A individualidade inferior de Sophia ajuda, secretamente, a Luz que está presente no mundo, organizando e animando a criação corrompida das esferas materiais. Tenta, por diversas formas, lembrar ao homem que, por mais tênue que seja, existe o vínculo místico da fagulha de luz interior com a Plenitude original.

Em “Upside Down” Eve perdeu a memória dos felizes momentos de união com sua “alma gêmea” após a queda no seu mundo. Do passado ficaram na sua mente estranhos sonhos e pesadelos que a faz sentir que algo está faltando, sem saber o que. Ao mesmo tempo ela é “prisioneira” na torre da Transworld trabalhando em designer gráfico da Transworld-Publicidade, estratégia fundamental para a reprodução do sistema: a lavagem cerebral ideológica.

Seu estado de divisão e alienação é o que moverá Adam a enfrentar a lei da gravidade e ir buscá-la em seu mundo invertido e sem fazer aqui um spoiler, Eve, tal qual o mito de Sophia, trará em seu corpo a fagulha de luz para animar e organizar um cosmos corrompido.

É claro que talvez esse tipo de análise soe para muitos leitores como algo arbitrário: mas será que o diretor sabia disso quando escreveu o roteiro? O ponto não é esse. Certamente o diretor não é gnóstico e jamais leu o apócrifo “Pistis Sophia” para inspirar o argumento.

Filmes como “Upside Down” apenas comprovariam uma tese que sustenta o blog “Cinema Secreto: Cinegnose”: a de que a subjetividade contemporânea, caracterizada por sentimentos como alienação, estranhamento, mal estar e exílio (decorrentes das mazelas de uma sociedade inautêntica), encontraria sua expressão em protagonistas e narrativas que dão uma nova roupagem a antigos arquétipos, como esse da Queda. E as mitologias gnósticas parecem ser aquelas que melhor expressam esses antigos arquétipos na atual indústria de entretenimento.  

Ficha Técnica

  • Título: Upside Down
  • Dietor: Juan Diego Solanas
  • Roteiro: Juan Diego Solanas e Santiago Amigorena
  • Elenco: Kirsten Dunst, Jim Sturguess, James Kidnie
  • Produção: Jouror Productions, Onyx Films, Studio 37
  • Distribuição: Millennium Entertainment
  • Ano: 2012
  • País: Canadá/França




Comentário(s)

-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;

Postagem Anterior Próxima Postagem

ads

ads