Pode parecer contradição, mas o defensor de acusados dos mais diversos crimes foi quem melhor instrumentalizou e deu liberdade à Polícia Federal

Por Marcelo Auler

Independência da PF: um legado do criminalista Marcio Thomaz Bastos

Criminalista de renome, disputado a peso de ouro por acusados dos crimes de colarinho branco, o advogado Márcio Thomaz Bastos, que faleceu nesta quinta-feira (20/11) aos 79 anos, tinha uma máxima que muita gente não entende, justamente por ter defendido acusados dos mais diversos tipos, de mensaleiros do PT a empreiteiros envolvidos no escândalo da Petrobrás.

Bastos, como lembram aqueles que com ele conviveram de perto, sempre resumiu sua participação na banca de defesa de qualquer acusado com uma explicação lógica e constitucional: “toda e qualquer pessoa merece defesa e desde que me procure eu tentarei, mesmo ela sendo culpada, uma condenação mais justa”. Não a toa ele era fundador e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

Se a sua liderança como advogado criminalista é mais do que reconhecida nesses 56 anos de militância – diplomou-se em 1958 –o curioso é que um dos principais legados que deixará ao país é justamente o de ter, como ministro da Justiça, promovido uma total transformação da Polícia Federal, ou, como ele mesmo dizia, tê-la transformado em “uma polícia republicana”.

O país assistiu, desde a sua redemocratização, os governos usarem politicamente a cadeira do ministério da Justiça. Quando, em janeiro de 2003, Márcio Thomaz Bastos assumiu o cargo, na mesma cadeira do gabinete já haviam sentado nada mais do que 18 ministros, no curto período de 16 anos. Só nos oito anos da gestão tucana de FHC, foram nove políticos e juristas que passaram pelo cargo. Neste mesmo período – 1995/2002 – o Departamento de Polícia Federal (DPF) teve cinco diretores e incontáveis crises. O primeiro deles, Vicente Chelotti, que mais tempo ficou no cargo (1995-1999) era constantemente acusado de chantagear o governo com supostas fitas com escutas telefônicas clandestinas que envolveriam o próprio presidente FHC em transações nebulosas. As chantagens não se confirmaram, as fitas jamais apareceram, mas elas acabaram por ajudar a defenestrá-lo do cargo, sem qualquer mudança sensível no departamento que dirigiu. Ele, de todos os que passaram por ali durante a gestão de FHC, era o que mais tinha condições de brigar pela mudança da instituição pois desfrutava da amizade do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, seu conterrâneo de Santa Maria (RS). Nada porém foi feito nem a favor da modernização da instituição, ou mesmo em termos de apuração dos desvios cometidos e muito denunciados, na época.

Tão logo foi convidado para assumir o posto, Basto tratou de convocar o delegado Paulo Lacerda, um ícone dentro do DPF, que se destacou em 1992 ao comandar as investigações do famoso Caso Collor de Mello, quando desenvolveu todo um trabalho de apuração de crimes do colarinho branco. Os dois se conheceram em 1990, durante outra investigação envolvendo um cliente de Bastos.

Em 1992, o advogado voltou a defender envolvidos no escândalo que apurava a cobrança de propinas por parte do tesoureiro da campanha do então presidente, o famigerado Paulo César Farias (PC Farias). Havia, porém, uma diferença entre as cobranças de então e estas que estão aparecendo agora, no caso Petrobrás e que alguns advogados tentam caracterizar como extorsões.

Naquela época, segundo a equipe de Lacerda apurou, realmente alguns empresários estavam sendo extorquidos, pois já tinham prestado os serviços, mas deixaram de receber os pagamentos. Passaram a ser procurados com a ameaça de que só veriam a cor do dinheiro mediante a contribuição com percentuais daqueles valores. Pelo que se contou na época, a cobrança havia subido para 15%. Para agravar a situação, Collor tinha feito o confisco de valores, deixando grande parte da população – inclusive as empresas – sem dinheiro disponível.

Mesmo tendo defendido empresários daquele caso, Bastos não se sentiu impedido de ser um dos redatores do pedido de impeachment que foi entregue na Câmara dos Deputados pelos presidentes da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho, e da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcello Laveniére.

Em dezembro de 2002, já se preparando para a posse, em uma conversa telefônica, o futuro ministro da Justiça me comunicou a escolha de Paulo Lacerda para o DPF. Já havíamos conversado antes e ele sabia que eu era um advogado desta nomeação, por considerar Lacerda sério o suficiente para moralizar a instituição e capaz bastante para fazê-la funcionar bem.

Mas, como o próprio Lacerda já admitiu em diversas vezes, o ministro fez mais do que convidá-lo. Deu-lhe autonomia de trabalho e conseguiu, junto ao presidente Lula, as verbas necessárias para equipar e modernizar a polícia. Um dos pontos fundamentais foi a realização de concursos para preenchimento de novas vagas abertas. Em 2003, início do governo, o DPF tinha 7.800 agentes. No final do primeiro mandato de Lula, já se contabilizava 11.800. Ao assumir o governo, em 2011, Dilma Rousseff passou a contar com 14 mil servidores no DPF.

Na conta do ex-ministro, que rapidamente virou conselheiro do presidente, também se pode creditar a posição do governo de respeitar as listas tríplices feitas por voto secreto na Procuradoria da República. Tanto Lula, como Dilma, ao contrário dos governos anteriores, sempre nomearam os mais votados pelos seus pares. Assim, tanto a Procuradoria como a Polícia Federal ganharam autonomia suficiente para desenvolverem as grandes operações que começaram a combater para valer o crime organizado, notadamente o crime do colarinho branco.

A autonomia era tanta que, como o próprio Lacerda admitiu várias vezes, o ministro – e, consequentemente, o presidente da República – só eram informados das operações no próprio dia em que elas ocorriam, às 8 horas da manhã, quando o diretor do DPF ia se reunir com Bastos. O encontro era marcado de véspera, apesar de diariamente os dois se reunirem. Mas o simples telefonema no final da tarde anterior dava a entender ao ministro que alguma operação ocorreria no dia seguinte, sem que jamais houvesse questionamento sobre o que aconteceria.

O próprio exemplo do mensalão, como agora do escândalo da Petrobras – ambos atingindo membros do governo e dos partidos que o apoiam – mostram que a mudança provocada na gestão dos petistas foi significativa, Afinal, nos governos anteriores, o habitual era jamais investigar peixe grande, fossem eles políticos, governantes ou mesmo empresários.

Ao mesmo tempo, estas operações bem sucedidas acabaram por gerar as pressões contra a permanência do diretor geral do DPF. Enquanto Bastos esteve no ministério, elas não surtiram efeito, mas pouco depois dele sair, Lula e o novo ministro, Tarso Genro, se viram na contingência política de mudar este quadro. Levaram Lacerda para a ABIN o substituindo no DPF por Luiz Fernando Correa. Não foi mera coincidência que, após a troca, todo o trabalho de investigações independentes – que sempre contou com os aplausos da população no primeiro mandato de Lula,- por um período entrou em uma espécie de banho-maria. Até hoje Lacerda admite que só fez o que fez por contar com o apoio irrestrito do ministro, inclusive financeiro.

Este, sem dúvida, independentemente do talentoso trabalho que desenvolveu na advocacia e na luta pelo Estado de Direito, foi o principal legado que Bastos deixou para a nação brasileira. Cabe agora manter a vigilância para não haver retrocessos.


GGN



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