Em meados dos anos 90, um bispo evangélico chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida em um programa da TV Record. Houve comoção nacional. A Globo aproveitou o incidente para conduzir uma feroz campanha contra o bispo e a Record.
O episódio resultou na demissão do bispo, no seu afastamento da sua igreja e em pedido de desculpas da Record.
Em Paris, o jornal “Charlie Hebdo” publica uma charge do profeta Maomé. Segue-se o atentado terrorista. A reação francesa foi uma nova edição do jornal com uma nova charge do profeta.
Nem se discute sobre o atentado: é um ato terrorista que deve ser condenado exemplarmente. O que se discute é sobre os limites da liberdade de expressão.
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No Brasil, os mesmos grupos de mídia que conduziram a campanha contra a Record levantaram-se em defesa da liberdade absoluta de expressão. E aproveitaram oportunisticamente do episódio para combater qualquer forma de regulação. Regulação, aliás, em curso em todos os países desenvolvidos.
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Vamos por partes.
Não se pode comparar a forma de expressão individual de um artista, ou mesmo de um grupo em seu meio, com a penetração de um grupo de mídia, ainda mais daqueles montados em cima de concessões públicas.
A escala é totalmente diferente. Os grupos de mídia atingem milhões de pessoas, forjam o pensamento de vastas camadas de leitores ou telespectadores. Especialmente no Brasil, detém um poder de cartel imbatível.
Por isso mesmo, tem que existir limites à sua atuação. Mas uma visão vesga do Judiciário não entende essas características e tende a colocar todos os abusos ao abrigo do conceito de liberdade de imprensa.
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Tome-se a própria Record.
Anos atrás, conduziu uma campanha pesada contra as religiões afro. O Ministério Público Federal de São Paulo abriu uma ação exigindo reparação, na forma de um programa produzido por lideranças negras, reparando os danos à imagem do negro e da religião.
Montou-se um programa digno, sem ataques à Record, mas explicando a natureza das religiões afro.
Não se conseguiu essa reparação. A sentença – absurda – dava à Record a liberdade total de veicular o que quisesse, sem que os atingidos tivessem direito à resposta.
Não há diferenças: o chute na santa, a charge do profeta, o ataque às religiões afro são atentados à religião. Por que esse tratamento diferenciado, de enaltecer o direito de Charlie Hebdo em satirizar o profeta, tirar o direito do bispo da Record de chutar a santa e conferir à mesma Record o direito de avacalhar às religiões afro?
A diferença está na ponta atingida: depende da maior ou menor influência do grupo atingido, em relação ao agressor.
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Confira-se:
No episódio da santa, os católicos eram os atingidos e os evangélicos os agressores. Prevaleceu a maior influência católica.
No episódio das religiões afro, atingidos foram os seguidores de religiões afro; agressores, os evangélicos da Record. Prevaleceu a maior influência dos evangélicos.
No caso do Charlie, os atingidos eram muçulmanos.
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Há algo de muito errado nessas métricas diferentes. Católicos, evangélicos, seguidores de religiões afro, todos merecem o respeito dos meios de comunicação. E os abusos devem ser coibidos, sim, pela Justiça.
E viva o Papa Francisco, o que melhor está entendendo esses tempos nebulosos.
GGN

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