É impressionante que num quadro dessa gravidade a resposta de parte da população e de pequena parte dos caminhoneiros seja a negação da representação com uma intervenção militar
Luis Fernando Vitagliano
Chamo de “paneleiros” – evidentemente numa atitude provocativa – aos que defenderam, ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, a saída da presidenta Dilma eleita legitimamente para ocupar o cargo – que todos sabemos, foi afastada não por corrupção, mas porque se supunha que sua gestão era insuficiente. Não se trata de uma categoria homogênea, passa pelo cidadão de classe média informada pela grande mídia ao tradicional modelo padrão autoritário da família brasileira – e talvez a única pauta que os uniu foi a repulsa ao PT.
De toda sorte, não devemos descartar (pelo menos em hipótese) que muitos entre a chamada “gente de bem” de fato tinham boas intensões ao se manifestar politicamente, talvez pela primeira vez nas suas vidas – ainda que estimulados pela Rede Globo. Porém, tanto ao bem intencionado quanto àqueles que se comportaram como bestas políticas, ou quanto aos que buscaram benefícios desde o impeachment, faltou o cálculo em relação às alianças e compromissos. A chamada nação convocou o chamado Centrão para efetivar a operação de substituição do governo – ignorando a legitimidade do processo, derrubando a democracia e passando carta branca aos políticos da velha ordem.
Cláusulas pétreas da constituição não levam esse nome por vaidade jurídica. Eleição ser das cláusulas pétreas a mais significativa se deve ao fato de sustentar a base do sistema político, sob pena de, se rompida, temos a perda de capacidade de governo – como vemos.
Por isso, não nos enganemos sobre o paneleiro – seja uma figura de bem ou, digamos, nem tanto – não houve ingenuidade quando foi concedida a Eduardo Cunha a capacidade de representar seus interesses. Como o operador do impeachment ele ganhou a missão de defender a nação contra o petismo. Não houve argumento o suficiente para dispersar as vozes que romperam a democracia e entregaram a nação ao que há de mais fisiológico na política. O resultado de tal irresponsabilidade é que herdamos um governo fraco e sem capacidade de representar seu projeto, com medidas já rejeitadas pela população.
Não é mérito dos caminhoneiros organizar uma das mais graves paralisações da história do país, é a incapacidade de governo que ficou evidente nos últimos dias.
E por que os cidadãos de bem não se manifestam? Por que concordam com tudo que está ocorrendo? Não há indícios de que pessoas de bom senso subscrevam os rumos da república. Pelo contrário, a avaliação do governo nunca esteve tão ruim.
Mas, os mesmos que exigiram a saída do PT como resposta à crise agora não sabem o que fazer. Tinham a convicção que a saída da crise dependia apenas deles, e que se pintando de verde e amarelo ocupando as principais avenidas das capitais, ou detonando seus tuítes podiam governar. Agora descobrem estupefatos que existe a política, partidária e institucional – e sobre isso nada entendem e não conseguem lidar. A conclusão lógica deste quadro entre parte dos paneleiros é tão estúpida quanto a capacidade de análise política: intervenção militar.
Que povo pode abrir mão da sua própria soberania em nome de uma casta social que não foi preparada para o governo? E com isso restringir sua própria liberdade?
Militares não são políticos e não têm função de governo – e não ser político é sim um demérito. Bons e maus políticos existem e os controles republicanos ajustam o sistema com maior ou menor eficiência. Mas, é preciso entender de política para governar. A irracionalidade já foi ao limite quando se concedeu poder e projeção a Eduardo Cunha simplesmente para fazer valer uma vaidade social e contrariar as últimas eleições.
A lógica de um regime repressivo é ainda mais grotesca: gerar o caos ao colocar um general despreparado para lidar com a complexidade da realidade brasileira simplesmente porque a aparência de ordem vai se sobrepor à restrição da liberdade de contestação. A história mostra que a suposta ordem só acontece porque os desmandos e inabilidades para lidar com a representação acumularão tantos problemas quanto qualquer governo civil, somados à incapacidade de representação que um regime repressivo tende a desenvolver.
É impressionante que num quadro dessa gravidade a resposta de parte da população e de pequena parte dos caminhoneiros seja a negação da representação com uma intervenção militar. A questão não é essa, mas de representação. Quem representa os caminhoneiros? Os autônomos e os empresários dos fretes? Não há canais de interlocução ou de representação – e isso agrava fortemente a crise. Não estamos somente diante de um governo fraco que toma medidas impopulares. Temos um governo que não tem capacidade de representação. Os militares não resolvem isso. É, portanto, um problema para a democracia que foi restringida.
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