A BANDEIRA DO BRASIL NA URSAL, SEGUNDO OS SITES CONSPIRACIONISTAS. FOTO: REPRODUÇÃO
Termo sarcástico de artigo de 2001 foi transformado em verdade pela direita reacionária porque reflete sua agenda para o país

Marina Lacerda

Boa parte da sociedade brasileira, na qual me incluo, surpreendeu-se na semana passada com a invocação, pelo candidato do Patriota, Cabo Daciolo –militar e pregador evangélico–, da tal “União das Repúblicas Socialistas da América Latina”, que, assim como a “ideologia de gênero”, só existe para seus opositores.

Segundo os sites que propagam a ideia, a URSAL seria uma derivação da Teologia da Libertação e do Foro de São Paulo, por sua vez oriundos de “terroristas” e “partidos comunistas latino-americanos”, com apoio de Cuba e Venezuela. A aliança entre estes temas chama a atenção.

A associação entre críticas à Teologia da Libertação, anticomunismo, evangelismo e militarismo não é aleatória nem recente. Trata-se de uma expressão do neoconservadorismo ou da chamada Nova Direita norte-americana.

O neoconservadorismo se refere originalmente à coalizão que reuniu parcela majoritária do movimento religioso evangélico, elementos da direita secular do Partido Republicano e intelectuais na eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos em 1980. O ideário resultante é neoliberal, anticomunista, contra políticas de bem-estar social, conservador cristão, familista e militarista –no âmbito externo e contra os inimigos internos.

Décadas após a queda do Muro de Berlim, no Brasil a agenda é a de combate ao “socialismo do século 21”, ou a Cuba, ou ao bolivarianismo, ou ao petismo ou, como descobrimos agora, à URSAL
O neoconservadorismo é uma força política ainda bastante presente –senão a mais relevante, vide Bush ontem e Trump hoje– nos Estados Unidos. E, como tratei em minha tese de doutorado recentemente defendida, o ideário neoconservador vem crescendo no Brasil.

É fácil de ver e os candidatos neoconservadores à Presidência –Bolsonaro e Daciolo– são perfeitas ilustrações. Defendem valores da família tradicional; pregam a Bíblia nos espaços políticos; reivindicam armamento pessoal e políticas criminais rígidas. Eles próprios são militares e cristãos conservadores; ao menos Bolsonaro prega valores quase absolutos de livre mercado. Ambos são anticomunistas.

Na década de 1980, o anticomunismo combatia a URSS. Hoje, décadas após a queda do Muro de Berlim, no Brasil, a agenda é a de combate ao “socialismo do século 21”, ou a Cuba, ou ao bolivarianismo, ou ao petismo ou, como descobrimos agora, à URSAL.

E é o combate ao comunismo que diferencia o neoconservadorismo de uma potência imperialista, os EUA, e o de um país de periferia, o Brasil. Nos Estados Unidos o anticomunismo neoconservador, no contexto da Guerra Fria, tinha dois vetores principais: a consolidação do capitalismo como o modo de produção vigente no mundo e a busca de os EUA se consolidarem como a potência global.

Aqui, ao contrário dos Estados Unidos, onde se buscava consolidar o país como potência global, o anticomunismo visa justamente realinhar o Brasil aos EUA, em uma relação assimétrica e subordinada
A integração alinhada aos EUA, que foi adotada na década de 1990 por países da América do Sul, foi revista a partir do novo milênio com governos progressistas no Sul do Continente –incluindo Lula no Brasil. Tratava-se da atuação do Brasil com um perfil assertivo, de valorização de arenas multilaterais, coordenação com países similares e de uma política altiva de desenvolvimento.

Essa política é que é estilizada como comunista, bolivariana, como a própria união das repúblicas soviéticas dos trópicos. Aqui, portanto, o combate ao comunismo vai no sentido contrário de o Brasil atuar com vistas à maior projeção internacional. Esse anticomunismo brasileiro visa justamente realinhar o Brasil aos EUA, em uma relação assimétrica e subordinada.

Em 2001, uma articulista divulgada por Olavo de Carvalho critica a integração “Castro-Chávez-Lula” ironizando que seria a “União das Republiquetas Socialistas da América Latina”. Ela está sendo sarcástica, e não dizendo que a URSAL existe.

Mas o termo ficou no ar; passou a circular com ares de verdade, em pequenos posts em comentários de sites maiores ou em blogs menores ligados à direita reacionária, em tom de teoria da conspiração. Uma brincadeira que pelo poder do submundo da internet foi se tornando real. A URSAL aparece com destaque antes das manifestações de junho de 2013, na época das eleições, cresce em 2015 e tem seu ápice em 2016, durante as votações do impeachment.

Sem pretender ser exaustiva nem cientificamente precisa, pode-se identificar pelo menos quatro fontes de formação de opinião da direita, além dos partidos políticos.

A primeira e mais importante é a Globo. Ilustrada, supostamente a favor do pluralismo, defende os direitos humanos, das mulheres, dos cidadãos LGBTs e dos negros. Mas defende o Estado mínimo e o pacote neoliberal (e, portanto, indiretamente, o aumento da desigualdade social), e o alinhamento do Brasil com os Estados Unidos –ao lado da demonização das alianças Sul-Sul.

A URSAL aparece com destaque antes das manifestações de junho de 2013, na época das eleições, cresce em 2015 e tem seu ápice em 2016, durante as votações do impeachment
A segunda são os “think tanks” libertários como o Instituto Millenium. Defendem liberdades individuais, absolutismo de livre mercado, criticam as alianças “bolivarianas”. Parecido com a grande mídia, mas com menos verniz democrata. São financiados pelo mercado financeiro, industriais e por entidades norte-americanas.

A terceira são organizações como o MBL –patrocinado pelos EUA– que promovem opiniões às vezes libertárias (liberdades individuais + livre mercado) ou neoconservadoras (conservadorismo moral + livre mercado) via tecnologias de difusão pela internet. São possivelmente as fontes mais importantes de fake news atualmente.

O quarto, a direita cristã. No eixo de sua argumentação está a família tradicional e sua interpretação bíblica como o projeto para uma boa sociedade; são neoliberais, mas têm dificuldade com pautas que mexem imediata e diretamente no patrimônio do eleitorado pobre, como a reforma trabalhista; defendem um profundo alinhamento com os EUA. São evangélicos e católicos conservadores. Desenvolvem-se a partir de cultos e pregações, concebidos no ambiente de constante intercâmbio internacional de pastores/padres/intelectuais cristãos.

A URSAL expressa uma ideologia neoconservadora. Mas ela surge como resultado de diferentes expressões da direita. A ideologia anti-chavista é estimulada pelo oligopólio da mídia. A autora que criou a ironia da URSAL é colunista do Instituto Millenium. A “tese” foi espalhada como verdade a partir da internet. E acaba apropriada por um militar evangélico que a coloca em um debate nacional.

As redes digitais progressistas têm tratado a URSAL como uma piada. Apesar do quê cômico, ela sintetiza, no método e no conteúdo, o pensamento de extrema-direita que vem crescendo no eleitorado e no parlamento.

Marina Lacerda é mestre em direito pela PUC-Rio e doutora em ciência política pelo IESP-UERJ.

Socialista Morena

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