O contemporâneo é o menos passivo dos indivíduos. Ele não se deixa cegar pelas luzes do seu tempo. Antes, visualiza com clareza a parte das sombras, essa íntima obscuridade que sempre esteve presente, assombrando todas as épocas da história.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, pergunta em Nudez “de quem e de que somos contemporâneos?”. “O que significa ser contemporâneo?”.
“O contemporâneo é o intempestivo”, nos diria outro filósofo – Roland Barthes. Antes dele, Nietzsche (também filósofo) disse: o intempestivo “procura [formas de] compreender um mal, um inconveniente, um defeito, alguma coisa da qual a época justamente se orgulha”.
Nietzsche afirma essa sua contemporaneidade diante do presente, se posiciona nele com discordância e desconexão pois crê que somente é verdadeiramente contemporâneo, que só pertence verdadeiramente ao seu tempo, aquele que não coincide perfeitamente com suas normas, com seus dogmas e com suas exigências. É exatamente através da diferença, da separação e, por vezes, através da própria exclusão que o verdadeiro contemporâneo é capaz, mais do que os outros, de perceber, processar e apreender a sua época.
Evidentemente o contemporâneo não vive em outro tempo. Ele está aqui, agora, entre nós. Homens e mulheres inteligentes podem até odiar seu tempo, mas sabem que a ele pertencem, irrevogavelmente. A diferença entre o contemporâneo e os demais é que o primeiro trava uma relação singular com o tempo, mais intensa, relação que se adere ao presente ao mesmo tempo em que dele toma distância.
Os demais coincidem exageradamente com sua época, as vezes até mesmo desejando-a; se ligam a ela – e se esforçam para tanto – em todos os aspectos e, exatamente por isso, não podem ser considerados contemporâneos. São incapazes, por tais razões, de visualizar a materialidade do real, de manter nele o seu olhar fixo. Eles – esses escravos do presente – vivem para as distrações enquanto o contemporâneo, por sua vez, vive não para experimentar as luzes, mas para perceber e observar a escuridão, essa parte ainda inexplorada – mas iminente, inevitável.
O contemporâneo é como o farol marítimo, é aquele que observa, é o primeiro a observar a chegada da tormenta. É aquele que se arrisca nas veredas do obscuro e, por isso, o único capaz de falar algo.
O contemporâneo é o menos passivo dos indivíduos. Ele não se deixa cegar pelas luzes do seu tempo. Antes, visualiza com clareza a parte das sombras, essa íntima obscuridade que sempre esteve presente, assombrando todas as épocas da história.
Esse contemporâneo, assim, consegue perceber e reconhecer a escuridão como algo que lhe diz respeito, como algo que o interpela, como alguma coisa que, mais do que qualquer luz, se dirige direta e singularmente a ele mesmo. Em outras palavras, o contemporâneo é aquele que recebe “diretamente no rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”.
O contemporâneo, ademais, é raro. É o único capaz não somente de manter fixo o seu olhar nas sombras do real, mas também de perceber nessa escuridão uma luz que, dirigida para nossa direção, afasta-se infinitamente de nós. O contemporâneo é corajoso pois assume um compromisso do qual só pode faltar. Por isso sofre.
O presente, percebe o contemporâneo, está com suas vértebras quebradas. Isso faz dele, do próprio presente, o mais distante dos tempos. Somente este sujeito o percebe; isso pois somente ele habita essa fratura. Ele é a própria intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o tempo. Somente ele é capaz de reconhecer nas trevas uma luz que, sem nunca poder nos alcançar, viaja permanentemente em nossa direção.
Estar, digamos, em “estado de contemporaneidade”, implica comportar um certo desvio onde a atualidade inclui dentro se si uma pequena parte do seu fora. Ele antecipa o seu tempo, vislumbra o “ainda não” insuperável. A separação e o distanciamento operando ao mesmo tempo com a proximidade – esse paradoxo dialético, portanto – são o que a define. O presente é o limiar entre um passado recente e um porvir. É um ponto de passagem quântico. É precisamente a parte do não vivido que está contida em todo o vivido. É o ponto que comporta os dois tempos.
Para ser contemporâneo é preciso se atentar a essa parte não vivida da vida, é preciso voltar-se para um presente que jamais foi habitado. É, por fim, colocar em ação uma relação especial e singular entre os tempos. O lugar que o contemporâneo habita faz da fratura não o lugar onde a pulsão de morte prevalece, mas o lugar de um compromisso ético absoluto entre as gerações.
Isso significa que o contemporâneo não é somente aquele que, “percebendo a escuridão do presente, apreende sua luz inalienável”, mas é também aquele que, “dividindo e interpelando o tempo, é capaz de transformá-lo, de nele ler de modo inédito a história”. A contemporaneidade clama por contemporâneos.
*Ramon T. Piretti Brandão é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e colabora para Pragmatismo Político
Pragmatismo Político
Postar um comentário
-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;