Será que libertar o país das amarras de um socialismo que nunca existiu por aqui e combater o politicamente correto (entenda-se permitir toda forma de brutalidade moral, verbal e física) vai resolver nossos problemas e fazer com que nosso povo viva melhor?
por Giam C. C. Miceli
Quando assistimos a um discurso de posse, sobretudo quando se trata de um presidente da República, esperamos que, em linhas gerais, haja uma breve exposição daquilo que a pessoa eleita se propõe a fazer em quatro anos. O povo espera soluções, alternativas e propostas para cultura, educação, saúde, economia, transporte, dentre outros aspectos imprescindíveis. De modo geral, é possível dizer que o povo (ou parte dele) espera o mínimo de seriedade.
No último dia 1º, tivemos os mesmos delírios que marcaram a campanha eleitoral. Era de se esperar que surtos como o kit gay e a mamadeira em forma de pênis fossem gracejos com o explícito fim de cativar um público sedento por violências (no plural, pois há várias delas). Mas fomos além: conseguimos presenciar delírios (também no plural) em pleno discurso de posse.
Falou-se em libertar o país das “amarras do socialismo”. O eleito, assim como a massa de assalariados aplaudindo como forma de alívio e/ou gratidão, não sabe diferenciar socialismo e políticas públicas com uma qualidade mínima. Do mesmo modo que nos mandam para Cuba, devemos mandá-los para a Suécia e a Noruega.
Falou-se, também, em combate ao “politicamente correto”, o que foi um convite para que o povo seja ainda mais (pois sempre foi) racista, machista, elitista, classista, egoísta e patologicamente violento. Será que não caberia a um chefe do Estado levantar os principais problemas de seu país, prometendo tentar resolvê-los? Será que libertar o país das amarras de um socialismo que nunca existiu por aqui e combater o politicamente correto (entenda-se permitir toda forma de brutalidade moral, verbal e física) vai resolver nossos problemas e fazer com que nosso povo viva melhor?
Se todos os problemas estivessem no discurso, estaria tudo relativamente bem. O problema é que trapalhadas começam a surgir. Retirar a embaixada brasileira de Tel Aviv, realizando sua transferência para Jerusalém significa colocar o Brasil na rota do terrorismo internacional. Isso, para agradar seitas de beira de estrada em troca de votos. Trata-se de grupos que pararam nos tempos bíblicos e sequer conseguiriam localizar o atual Estado de Israel em um mapa-múndi. Os comentários feitos por ministros e ministras são simplesmente deploráveis. São comentários de quem não entende o básico que o cargo exige. É impossível ver algo além de trapalhadas.
Tivemos um processo eleitoral forjado da maneira mais suja possível: notícias falsas circulando pelas redes sociais. Foi isso. A campanha foi exatamente assim. Não houve propostas, não houve diálogo e nem debates, já que foram evitados por motivos óbvios. Incapacidade. Ausência absoluta de propostas. O pouco de propostas surgiu do impossível: combater o socialismo (qual?); combater uma escola que forma militantes (se escolas formassem militantes, Guilherme Boulos ganharia no primeiro turno e o real vencedor não conseguiria ser síndico de prédio em cidade pequena); combater a ideologia de gênero (defina). E, mesmo após a vitória, temos uma completa falta de seriedade. Vemos uma marionete, alguns fanfarrões tirando proveito da situação e aqueles que provavelmente darão as cartas estão quietos, quietos.
Lamentavelmente, o que temos é isso. Gritaria, balbúrdia, fanfarronice, agressão, truculência e aplausos de uma massa assalariada e sem rumo. Uma massa que aplaude, mas que ficará mais pobre, com menos perspectivas, com menos direitos, com mais chibata (mesmo invisível, ela existe) e com menos acessos. A afirmação de Lima Barreto continua atual: não temos povo, temos público.
*Giam C. C. Miceli é professor da rede municipal de Itaboraí, licenciado em Geografia, com pós em Educação e mestrado em História da Educação.
Le Monde Diplomatique


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