Em poucos anos, perdeu-se praticamente tudo o que o país conquistou desde a transição para a democracia, e levará décadas até se compensar essa perda de confiança. A perda de "soft power" sairá cara para os brasileiros.

Protesto pró-democracia e contra o governo Bolsonaro em Manaus, em 2 de junho de 2020
Protesto pró-democracia e contra o governo Bolsonaro em Manaus, em 2 de junho de 2020

Nada ilustra tão claramente a perda de soft power pelo Brasil quanto a resistência crescente na Europa contra o acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia e o desmatamento da Amazônia. Três parlamentos nacionais europeus votaram contra a ratificação. Centenas de ONGs protestam contra a cooperação com a América do Sul, sobretudo por causa do Brasil. Bancos, fundos e empresas querem retirar seus investimentos se os incêndios na região amazônica não diminuírem.

É inegável: no momento, criticar abertamente o Brasil vale a pena. Com isso, se conquistam votos entre eleitores, empresas ganham clientes, e organizações não governamentais angariam doações e atenção. Isso mostra que a imagem do Brasil nunca foi tão ruim como agora – algo que sairá caro para o país.

É uma questão de "poder suave"– ou melhor, da perda dele. Nas décadas desde o retorno à democracia, em 1985, o Brasil pôde acumular uma reserva considerável de soft power – termo cunhado pelo cientista político americano Joseph Nye para designar a influência que um país exerce no mundo sem empregar incentivos econômicos ou poder militar.


O Brasil sempre utilizou seu soft power estrategicamente. Com destreza de negociação e diplomacia, os governos democráticos ampliaram sua influência mundial. Por certo tempo, o país jogou numa liga da política internacional mais elevada do que lhe permitiriam seu poder econômico ou potencial de ameaça: na discussão do clima, no livre comércio, na defesa dos direitos humanos, no combate à pobreza, na política global de saúde, mesmo na crise financeira de 2008, o Brasil sentou-se à mesa de negociações junto com as grandes potências.

Pela capacidade de falar e se entender com todos, o Brasil tinha influência. Por isso, o politólogo Parag Khanna já o via como um dos ganhadores da globalização; todas as potências queriam tê-lo como parceiro, por ser capaz de impulsionar ou restringir o êxito delas. Além disso, o Brasil era uma nação cultural e esportiva admirada em todo o mundo, um cobiçado destino de viagens e de residência para muitos. Também isso constituía o soft power brasileiro.

Mas esses tempos se foram. "Poucos países perderam tanto a reputação como o Brasil", comenta Rubens Ricupero, jurista e ex-embaixador. Sob a ditadura militar, a imagem do país no mundo era igualmente ruim, mas em compensação a economia nacional apresentou crescimento recorde.

O rebaixamento começou com os grandes escândalos de corrupção, que atravessaram toda a América Latina e lançaram uma sombra retroativa sobre os governos Lula e Dilma. A eleição do populista de direita Jair Bolsonaro como presidente acelerou o declínio. Seus permanentes ataques à democracia, sua governança caótica, a persistente crise econômica, e agora, acima de tudo, a má gestão da crise da covid-19, colocando o país no segundo lugar de casos confirmados e mortes: tudo isso transformou o Brasil num pária do mundo. Sem aliados, sem simpatias.

Os custos dessa perda de soft power já se fazem sentir desde já: há poucos dias, 29 bancos e fundos globais enviaram uma carta aberta ao governo brasileiro. Administradores de um total de 3,75 trilhões de dólares em ativos, eles expressaram apreensão pelo aumento do desmatamento na Amazônia e o declínio da política ambiental e de direitos humanos.

Desse modo, os protagonistas financeiros reagiram à pressão de seus acionistas. Para eles, uma política agrária justa, a proteção da floresta tropical, de minorias e indígenas e uma política de gênero são base para seus investimentos no Brasil – senão, vão retirar seu capital.

Serão necessárias décadas para recuperar essa confiança.

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Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.


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