Se o desfile dos motoqueiros do apocalipse se repetir e se replicar brasil afora, o necrarca vai acreditar que tem de fato um exército e o exército de fato terá um enorme trabalho para desarmar essa bomba que colocou no próprio colo

Lelê Teles




no barracão de zinco, no alto do morro do papagaio bicudo, dona fulana chora a inefável dor da mãe que perde uma filha.

não há palavra, em alfabeto de língua alguma, que tente definir o que sentem as donas fulanas.

essa é uma dor infulanizável.

a filha, cinco dias atrás, estava radiante com o novo emprego como caixa em uma conveniência, na lagoa do sapo de sapatênis.

pobre mulher.

ao longe, o rádio velho toca um chiado fúnebre. no regaço, a velha tricota um zé gotinha empapado de lágrimas.

um pouco mais embaixo, já inalando a negridão do asfalto, no apartamento de larga ventana na avenida ave unida, sicrana fuma um cigarro saborizado; só de camisola, desolada.

o olhar, vazio e cheio de tristeza, mira o mar como quem mira um céu sem nuvens.

está assim há uma semana e meia, desde que a mãe e o marido foram enterrados, no mesmo dia, e pela mesma covid que levara a filha de fulana.

a dor, de fulana e sicrana, espalha-se por toda a cidade, por todas as classes, atinge todas as idades e sexualidades.

no entanto, para o meu espanto, biltres beltranos brincam, brindam e bradam em saudação ao necrarca que surge aboletado em uma motocicleta.

a boca, que é um rasgo reto e sem expressão, exibe um esgar de esvoaçante alegria.

no asfalto, à beira mar, o gado mocho verde-amarelo muge aglomerado e desmascarado: poodles de pulôver, patinetes elétricos, hoverboards, camisas polos, vuvuzelas, microfones, perdigotos e balbúrdia.

logo, os anjos do inferno surgem como um enxame de práguicos gafanhotos, motificados, buzinantes, jactando-se de sua arrogante sociopatia.

o desfile de motocicletas promovido pelo “bunda suja” é um escárnio, é um escarro, uma cusparada no caixão dos quase meio milhão de mortos pela negligência do aparato civil/militar que se inquilina no poder, sem pudor, sem empatia, sem a mínima vergonha na cara.

um patriota, disse-me o grande sábio papaku, é por definição um topofílico, um sujeito que tem amor ao lugar em que vive e esse sentimento de pertencimento só se justifica se compartilhado com aqueles com os quais ele convive.

o cacique papaku leu yi-fu tuan, elementar.

quis dizer, o oráculo de penachos, que um patriota não é um cara que ama uma bandeira, mas as pessoas que formam a nação na qual ele vive.

aquele que despreza a vida dos seus compatriotas, quão patriota é?

qual era o motivo da festa, da farra e da algazarra dos motobrothers? qual era a razão daquela algaravia zombeteira? o que comemoravam os de duas rodas, do que se refestela o gado bípede?

zero-zero e sua patota precisam ser contidos, ou vão tocar fogo neste país.

o cara já sabe que a reeleição foi pro saco, agora é a tática miliciar: arreganhar os dentes, exibir os músculos, deixar a pistola à mostra na cinta, gargantear, xingar, ofender e dizer que vai matar e desmatar, mandar e desmandar.

e arrastar os corpos ensanguentados pelas vielas, para exibir sinais de força e poder.

se as instituições estivessem de fato funcionando, o meganhismo desse sujeito já teria sido desmontado.

se o desfile dos motoqueiros do apocalipse se repetir e se replicar brasil afora, o necrarca vai acreditar que tem de fato um exército e o exército de fato terá um enorme trabalho para desarmar essa bomba que colocou no próprio colo.

palavra da salvação

 

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