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A presença de Ilda Nogueira, coordenadora do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, na única audiência pública sobre a PEC 3/2022, a PEC das Praias, no Senado Federal, rendeu umas três linhas no noticiário – quase nada perto do espaço ocupado pela briga entre Luana e Neymar.
Não se pode dizer que a fala da representante de mais de 1 milhão de famílias que vivem à beira de praias, rios, lagos e extraem cerca de 60% do pescado consumido pelos brasileiros foi ouvida de fato pelos senadores ali reunidos para discutir a privatização das terras de marinha, hoje bens da União, onde a maioria dos pescadores vive.
Para além de um pequeno grupo que a saudou com palavras de ordem – “A nossa luta é todo dia, o litoral não é mercadoria” –, não houve reações nem perguntas dos parlamentares presentes.
A inexistência de consulta prévia às comunidades pesqueiras – com participação restrita a um link de internet durante a audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – sobre uma mudança na Constituição que as afeta diretamente foi o primeiro ponto levantado por Ilda, pescadora da Baixada Maranhense.
“Quem sofre com os assoreamentos, com o desmatamento desordenado dos grandes empreendimentos, sabe que essa PEC o que visa mesmo é a urbanização das orlas por empreendimentos que têm tomado as terras dos que realmente são donos, daqueles que vivem lá desde que nasceram das suas ancestralidades, que estão ali de fato e de direito, e têm perdido a vida porque são obrigados a sair de suas terras. Essa PEC vai
fazer muito mal pra gente, por isso dizemos que nós não queremos, mas,
se for para aprovar, não pode ser dessa maneira, tem que ser discutida
com os pescadores, com as comunidades tradicionais, que dependem da
beira do rio, da beira do mar”, reivindicou Ilda.
“Não é chegar e aprovar uma coisa que a gente nem sabia até essa audiência de hoje, né? A gente descobriu assim porque nós não fomos informados, fomos pegos de surpresa e pra gente estar aqui hoje não foi fácil. Mas, como eu falei, tinha que começar por nós, porque se é algo que vai nos atingir primeiro tinha que consultar aquelas pessoas que realmente dependem das áreas marinhas”, pontuou a pescadora.
O senador Flávio Bolsonaro, o único a se pronunciar depois da fala forte de Ilda, teve a cara de pau de retrucar: “Essa PEC tramita desde 2011, não é uma coisa que pegou ninguém de surpresa. E você não iria perder nada porque sua casa seria de interesse social”.
A audiência pública para a qual os habitantes e trabalhadores das terras marinhas não foram convidados, como Ilda deixou claro, ocorreu no dia 28 de maio passado e teve como mérito alertar o Brasil inteiro de que a privatização do nosso litoral estava em curso. Dois dias depois, por exemplo, deu-se o bate-boca nas redes sociais entre Luana Piovani e o reincidente Neymar (quando se trata de pôr seus interesses acima do bem público), que despertou a indignação nas redes sociais obrigando Flávio Bolsonaro a improvisar uma live e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, a prometer “cautela e um amplo debate” antes da votação. O governo também se pronunciou, enfim, manifestando-se contra a emenda constitucional.
Até então, como canta Chico Buarque, “dormia a nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações”. Em números, a aprovação da PEC representaria uma perda “que ultrapassa 1 trilhão de reais, ou seja a maior transferência de patrimônio público para o privado que se tem notícia na história”, segundo manifestação da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) de 2022, quando a PEC (agora ressuscitada com outro número) foi aprovada na Câmara dos Deputados.
Mais do que isso, como lembrou Ilda, “o pior de tudo é perder a vida, e muitos têm perdido sua vida porque têm sido retirados dos seus territórios”.
Um relatório da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP), de 2021, relata o atendimento a mais de 50 mil famílias atingidas por conflitos entre 2018 e 2019 – isso em um pequeno recorte, de 166 comunidades pesqueiras a que a CPP tem acesso em 14 estados brasileiros.
A restrição de acesso ao território é a razão principal dos conflitos, segundo o levantamento da CPP. Também aparecem com destaque o desmatamento das áreas, a especulação imobiliária e a existência de latifúndios e empreendimentos turísticos, situações relacionadas à posse das comunidades sobre os territórios e que interferem no meio ambiente do qual dependem: a destruição de hábitats e a diminuição e queda de qualidade do pescado estão entre as principais consequências da invasão dos territórios.
Se é verdade que a SPU não impede os conflitos como deveria fazer, nem mesmo a privatização do acesso às praias (em 2017 a Agência Pública fez um especial de reportagens investigativas sobre isso), a situação só se agravaria com a aprovação da PEC: de acordo com o relatório da CPP, 61% dos agentes causadores de conflitos são empresas privadas (24%), agentes privados (21%) e latifúndios (15%). Resultado dessa ocupação: 45% das praias do Ceará sofrem processos erosivos que já provocaram a perda de R$ 1 bilhão em Santa Catarina.
Como acontece nas florestas, são as comunidades tradicionais que zelam pela preservação da costa brasileira, protegendo ecossistemas de alta relevância (mangues, restinga, apicum) essenciais para enfrentar a emergência climática, já que a elevação dos oceanos atinge exatamente a intersecção entre a terra e o mar, onde está a faixa de 33 metros de terras de marinha, alvo da pretendida privatização.
É por isso, senadores, que a casa de dona Ilda e as de seus companheiros de luta, senadores, não são apenas de “interesse social”, mas de interesse da humanidade.
Uma realidade que pode ser difícil de entender para pessoas como Flávio Bolsonaro, que há anos manobra para ter uma mansão para chamar de sua em uma ilha em Angra dos Reis. Exatamente naquele litoral que seu pai, Jair, queria transformar em Cancún, onde o acesso às praias é, sim, restrito e pago, como bem sabe o senador, que se esforça para negar o óbvio.
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