Em resposta a um cenário em que mais encarceramento e mais polícia resultam, paradoxalmente, em cada vez mais criminalização, é preciso levantar a alternativa abolicionista. Em outubro, um seminário em SP promoverá vasto debate sobre o tema


Ariel Machado, Gabriella De Biaggi, Luciana Niro e Thell Rodrigues
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Por Ariel Machado, Gabriella De Biaggi, Luciana Niro e Thell Rodrigues

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O 1º Seminário de Geografias Abolicionistas será realizado na Universidade de São Paulo, de 15 a 18 de outubro. A participação é gratuita e haveráfalas de movimentos sociais, pesquisadoras e pesquisadores nacionais e internacionais. Veja a programação completa ao final do texto

Atualmente, o Brasil é o terceiro na lista de países com mais pessoas encarceradas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China1. Em uma aparente contradição, temos observado que, desde a redemocratização, o número de pessoas atrás das grades2 e os índices de letalidade policial3 têm crescido assombrosamente no país, mesmo em estados governados por partidos políticos ditos de esquerda. É notória também a expansão de empresas de segurança privada, que adquirem um controle crescente sobre espaços urbanos, privados e públicos, e a disseminação de estruturas arquitetônicas e urbanísticas cada vez mais equipadas com dispositivos de vigilância e monitoramento – notadamente através de perímetros de intervenção urbana e do avanço de frentes imobiliárias. Todos estes fatores compõem uma carceralidade ampla, que se espraia para além dos muros das prisões, e caracteriza as cidades e metrópoles brasileiras contemporâneas.

Diante deste cenário aterrador, no qual todo tipo de violação parece justificado em nome da “segurança”, alguns movimentos sociais – em especial aqueles formados por mães e familiares de pessoas mortas e privadas de liberdade pelas forças do Estado – têm sido as principais vozes a se erguerem contra o suposto consenso punitivista. No lugar de ecoarem discursos de medo que apresentam o “crime” como grande inimigo interno a ser combatido, estes movimentos têm denunciando a criminalização de corpos e espaços negros e periféricos, a qual se sustenta sobre uma longa história de desumanização e violência racializada, mas se atualiza, com novos termos e tecnologias.

O abolicionismo penal emerge, assim, questionando os próprios pressupostos do que entende-se como “justiça” e “segurança”. Nesse entendimento, a resposta não está na humanização das prisões ou no treinamento das forças policiais em direitos humanos, porque a violência de Estado não é uma falha na execução de políticas públicas, um desvio ou uma exceção. Por mais radical que ainda soe para a grande parte da população, a ideia de abolir as prisões e as polícias baseia-se, fundamentalmente, no entendimento de que estas instituições não trazem soluções, mas são parte central do problema no que se refere à reprodução de desigualdades e à manutenção de hierarquias sociais racializadas.

Em ambientes acadêmicos, ainda é raro encontrar discussões relacionadas às políticas de encarceramento, à expansão dos sistemas prisional, de justiça criminal e do policiamento, especialmente no que diz respeito às abordagens vinculadas ao abolicionismo penal. E embora a dimensão espacial seja fundamental à compreensão de tais processos – que envolvem expedientes de expulsão e contenção de determinados recortes populacionais e de monitoramento de fluxos de pessoas e informações – a Geografia brasileira tem se mantido relativamente distante do debate.

Por isso, enquanto estudantes de pós-graduação em Geografia Humana e enquanto pessoas que têm tido contato próximo com movimentos sociais em nossas trajetórias, nos reunimos para organizar o 1º Seminário de Geografias Abolicionistas no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), projeto que foi abraçado pelos professores César Simoni Santos e Elisa Favaro Verdi, coordenadores do evento. O Seminário, que será realizado entre os dias 15 e 18 de outubro de 2024, reunirá pesquisadoras/es, movimentos sociais, estudantes e demais pessoas interessadas em discutir dimensões geográficas da carceralidade e da abolição.


Ato em memória às pessoas mortas na chacina de Osasco e Barueri (2015), organizado pelo movimento de mães
Através de mesas de debate e rodas de conversa, debateremos diferentes aspectos e impactos do encarceramento, da carceralidade e da criminalização na atualidade. As atividades trarão contribuições de movimentos que vêm construindo tais debates há anos e de pessoas que têm pesquisado estas questões em distintas áreas das ciências humanas e diferentes partes do país, informadas por perspectivas abolicionistas. Além disso, as palestras de abertura e encerramento serão realizadas por duas palestrantes internacionais, cuja atuação acadêmica e política têm colaborado para criar e consolidar o campo da Geografia Abolicionista nos EUA: Lydia Pelot-Hobbs (University of Kentucky) e Ruth Wilson Gilmore (CUNY). Esperamos, com o evento como um todo, oferecer subsídios à elaboração de novas pesquisas a respeito destes temas no campo da geografia, mas também estimular e fornecer condições para a inserção do público em geral nestas discussões prementes, de grande relevância política.

O evento evento será gratuito e aberto e as palestras realizadas em inglês contarão com tradução simultânea, graças ao apoio do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (PPGH-USP), com disponibilização de recursos do PROEX, e da Antipode Foundation, que concedeu a bolsa Right to the Discipline ao projeto. As mesas terão transmissão online ao vivo através dos canais de comunicação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

PROGRAMAÇÃO

15 outubro

⠐ 15h – Conferência de Abertura
Prof. Lydia Pelot-Hobbs – University of Kentucky
Professora de Geografia e Estudos Afro-Americanos e Africanos na Universidade do Kentucky. Autora de Prison capital: mass incarceration and struggles for abolition democracy in Louisiana (2023 – UNC Press).

18h – Mesa 1: Securitização e criminalização de espaço urbanos no Brasil
A disseminação de dispositivos eletrônicos de monitoramento e de tropas agentes de segurança privada, a fortificação de edifícios, a atualização das formas de segregação que recortam as cidades e metrópoles brasileiras e a realização de operações policiais voltadas à expulsão e/ou contenção de grupos considerados “indesejáveis” são algumas das expressões dos intensos processos de securitização do espaço urbano observados no país nas últimas décadas. Nestes processos, novas modalidades de controle à céu aberto combinam-se com a longa tradição do Estado brasileiro de criminalização de corpos e espaços negros e não-brancos. A partir de perspectivas abolicionistas e de um enfoque no contexto nacional, a mesa 1 propõe uma discussão desta carceralidade ampla, que se espraia para além das prisões e, cada vez mais, caracteriza a vida urbana e a produção do espaço.

Participantes:
Prof. Adalton Marques (UNIVASF)
Mariana Nesimi (PPGH-USP)
Prof. Rodrigo Firmino (PUC-PR)

Mediação: Gabriella de Biaggi (PPGH-USP)

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16 outubro

15h – Roda de conversa com Memórias Carandiru
Organização dedicada à preservação da memória de sobreviventes do cárcere e do massacre na Casa de Detenção em outubro de 1992.

18h – Mesa 2: Geografias carcerárias e ajustes prisionais
A partir da década de 1990, o aumento continuado do encarceramento no Brasil envolveu a expansão inédita dos sistemas prisionais estaduais e a ampliação de seus parques penitenciários. Antecipado em pouco mais de uma década pelos países do norte, o processo de encarceramento em massa e as elaborações acerca de uma virada punitiva diante do desmantelamento das formas assumidas pelo welfare têm enfatizado um deslocamento de sentido da prisão contemporânea. De modo geral, o abandono dos ideais disciplinares de reabilitação ou ressocialização revelariam a incapacitação como finalidade última do encarceramento, sintetizada na imagem ascendente da prisão-depósito. Mais do que a transposição do paradigma da incapacitação ao contexto brasileiro, a mesa visa discutir a conformação particular de geografias carcerárias e as diferentes configurações territoriais do ajuste prisional, compreendendo-as a partir da mobilização de excedentes de terra, capital, força de trabalho e capacidade estatal.

Participantes:
Prof. Rafael Godoi (UEMA)
Bruno Xavier (Igra Kniga)
Victor Santos Oliveira (UFPB)
Prof. Patrick Lemos Cacicedo (USP)

Mediação: Ariel Machado (PPGH-USP)

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17 outubro

15h – Roda de conversa com Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo
Fundada em 2018, reúne sobreviventes do cárcere e ativistas, movimentos sociais, jornalistas e demais pessoas que dividem uma perspectiva abolicionista penal e da luta contra o encarceramento em massa.

18h – Mesa 3: Além dos muros das prisões – familiares de pessoas presas e vítimas da violência de Estado
Organizados em torno da resistência à letalidade policial, ao encarceramento em massa e suas consequências nas periferias, os movimentos de mães e familiares de pessoas privadas de liberdade e vítimas da violência do Estado estabelecem um laço tão crucial quanto invisibilizado entre as comunidades periféricas, o poder público e as unidades prisionais. Além de fornecer apoio social, assessoria jurídica e referência aos familiares afetados pela violência policial e pelas dinâmicas carcerárias, esses movimentos buscam a construção coletiva de alternativas ao modelo punitivo vigente. Esta mesa propõe, assim, um diálogo crítico entre diferentes perspectivas acerca do impacto devastador do sistema penal e da criminalização direcionada a pessoas pobres, pretas, faveladas e afroindígenas no estado de São Paulo nas últimas décadas.

Participantes:
Miriam Duarte Pereira (AMPARAR)
RaildaAlves (AMPARAR)
Débora Silva (Mães de Maio)
Zilda Maria de Paula (13 de Agosto)

Mediação: Luciana Niro (PPGH-USP)

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18 outubro

18h – Conferência de encerramento
Prof. Ruth Wilson Gilmore – City University of New York
Professora da City University of New York (CUNY) e uma das principais referências internacionais sobre os temas do abolicionismo e da carceralidade no campo da Geografia. Foi co-fundadora de movimentos sociais como a Critical Resistance. É autora de Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal (2023 – Igrá Kniga).

Contato e difusão:

seminariogeoabolicionistas@gmail.com
https://geografiasabolicionistas.wordpress.com
@geografias_abolicionistas

1 A lista de países com maior população prisional é disponibilizada pelo World Prison Brief:
<https://www.prisonstudies.org/research-publications?shs_term_node_tid_depth=27>. Acesso em 14 de março, 2024.

2 Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, em 2023 havia 649.592 pessoas em unidades de detenção e 190.080 em prisão domiciliar. Disponível em: <https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen>. Acesso em 8 de fevereiro, 2024.

3 De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, em 2022 foram registradas 6.429 mortes por intervenção policial, as quais representam 13,5% de todas as Mortes Violentas Intencionais (MVI) no país. Em estados como a Bahia e o Rio de Janeiro, esses índices são ainda mais elevados, chegando a 22% e 27,9% das MVI naquele ano, respectivamente. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes>. Acesso em 8 de fevereiro, 2024.


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