A força persuasiva da retórica religiosa reside não na clareza lógica, mas no poder do paradoxo e do mistério para comover e converter. Diferente da argumentação demonstrativa, ela se sustenta no pathos e numa autoridade revelada que exige submissão, não compreensão racional
aterraeredonda.com.brRicardo Kobayaski
15–20 minutos
Por MARILIA PACHECO FIORILLO*
A força persuasiva da retórica religiosa reside não na clareza lógica, mas no poder do paradoxo e do mistério para comover e converter. Diferente da argumentação demonstrativa, ela se sustenta no pathos e numa autoridade revelada que exige submissão, não compreensão racional
Ao contrário da retórica jurídica, em que clareza e coesão seriam predominantes, quando não obrigatórias, a retórica religiosa extrai sua capacidade de convencimento da ambivalência, das lacunas, da obscuridade. Como disse Tertuliano de Cartago, o mais brilhante argumentador dos primeiros Padres da Igreja, depois de Agostinho de Hipona (a África do Norte, até o séc V, produziu os grandes teólogos) “Creio porque absurdo”.
Quanto mais nebulosa e inescrutável for a mensagem, maior a comoção criada e, em consequência, mais vigorosa e imutável será a conversão. É por isso que a palavra dogma, na sua acepção original, é sinonimo de mistério, uma verdade desvelada não por sua consistência lógica mas exatamente pelo oposto: as incongruências, os oxímoros, os disparates. “Creio porque absurdo” é o pilar da crença revelada pois não precisa de provas. Aliás, as despreza como algo impertinente.
O que Tertuliano sugere é que o verdadeiro cristão (ou o legítimo crente, como preferirem) é aquele que aceita sem piscar, submetendo-se a uma revelação que emerge diretamente do inefável mundo espiritual, sem a mediação de fundamentos, métodos ou juizos de outra ordem. A retórica religiosa é puro pathos.
Uma palavrinha sobre ‘retórica’, termo tão injustamente maltratado. Retórica não é ornamento, muito menos um ardil de enganação. Como a sofística grega, apenas perdeu a guerra, melhor, a batalha filosófica engendrada por Platão (embora o discipulo Aristóteles a tenha resgatado). Ainda padece da triste sina de ser relegada ao papel de coadjuvante inescrupuloso, de mero truque ilusório diante da assertividade e universalidade da Ideia (maiúscula) e da substância na tradição platônico-aristotélica. Esta interpretação pejorativa ainda prevalece, e que reclamem os seguidores da linhagem diminuta dos desconfiados, daqueles que fazem da dúvida uma arte de martelar o pensamento para estilhaçar certezas fáceis e confortantes.
O filólogo norte-americano George Alexander Kennedy, falecido em 2022 com 93 anos, é provavelmente o maior especialista em retórica religiosa. Formado em Harvard, lecionou literatura comparativa e retórica na University of North Carolina at Chapel Hill e presidiu a America Philological Association.
Sua obra sobre retórica clássica é um ponto de inflexão nos estudos sobre o tema. Erudito e minucioso, começa advertindo para a importância de distinguir a “crítica retórica” da mera análise de estilo. Mais que as figuras ou a disposição das palavras, a crítica retórica deveria se preocupar com a invenção: que uso de evidências e como se faz o manuseio das emoções.
Vale lembrar que os autores e compiladores do Novo Testamento – e do Evangelho de Tomé, o mais antigo dos 53 evangelhos que circulavam em torno do Mare Nostrum, o Mediterrâneo – estes ‘editores’ incansáveis das boas novas queriam, antes de tudo, angariar simpatia e correligionários. E convencer é atribuição da retórica por excelência, a faculdade de descobrir em cada caso os meios de persuasão à disposição, na famosa definição de Aristóteles.
Nessa medida, a crítica retórica seria um importante cabedal conceitual para preencher uma espécie de ”vazio de intenções“ deixado pelo ”criticismo formal“ e ”criticismo literário“, as duas metodologias mais difundidas no estudo teológico dos textos cristãos. O criticismo formal tem sua limitação em se interessar mais pelas fontes dos textos do que pelos próprios textos.
O criticismo literário, que tem em Northrop Frye (1982) um formulador de excelência, cometeria o equívoco (venial) de tratar de tudo, menos do principal: o modo como os ouvintes destes evangelhos, genuínos depositários da legitimidade espiritual, poderiam tê-los apreciado. As duas distrações acima mencionadas, aparentemente, são a mesma: nem o criticismo formal, nem o literário, levam em devida consideração o impacto persuasivo dos textos.
Este só poderia ser dimensionado via função esclarecedora da crítica retórica: deslindar, mesmo que aproximadamente, as reverberações de um discurso perante a audiência, e em seu próprio tempo e ocasião. O Evangelho de Tomé, muito antes de ser trasladado para um códice e permitir, portanto, uma leitura (Biblioteca de Nag Hammadi) , foi profusamente difundido, sempre oralmente, aqui e ali, na Palestina, no Egito e na Síria, por líderes cristãos itinerantes do século II e III, e propalado em assembleias formadas geralmente por analfabetos.
Só assim, neste Sitz im Leben, nesta ”situação existencial“, se explicam certas qualidades próprias deste discurso público, e gênero literário, batizado de “boas-novas”, tais como a linearidade, imprescindível numa peça oral, ou a repetição de palavras-chave para a melhor memorização do orador ou o ‘crescendo’ até o desfecho, cujo efeito era medido no metro comunitário, não intimista.
De modo geral, o que distingue a retórica religiosa da judicial, da epidíctica e da deliberativa é que ela se pauta não por convencer racionalmente, mas por meio de uma proclamação autorizada. Daí que ela faça uso constante, e frutífero, do paradoxo, da rejeição deliberada da razão mundana, de uma providencial obscuridade. E, sobretudo, de chamados ou convocações que não admitem réplica.
Para elucidar, podemos contrastar o uso de duas destas características no Novo Testamento, versus no Evangelho de Tomé, apreciando o caráter revelacional, não demonstrativo (embora deliberativo) de suas afirmativas.
No Novo Testamento as provas externas são, curiosamente, etéreas e inspiracionais e, e embora se faça uso de testemunhos e citações do Antigo Testamento, a mais irrefutável das provas externas é a mais ilógica delas: a existência dos milagres. No caso do Evangelho de Tomé, ao contrário, não há milagres e nenhuma prestidigitação é citada, tamanho o desinteresse por evidências externas.
Quanto à prova interna (atinente à mensagem em si) enquanto no Novo Testamento ela é ”canônica“, isto é, uma decisão burocrática, fruto da oficialização do cristianismo como religião de Estado pelo imperador Constantino (sec IV) , no Evangelho de Tomé boa dose da validade da prova interna recai sobre o indivíduo que assimila e introjeta o ensinamento, portanto, incide na emoção de orador e (sobretudo) ouvinte. È a audiência – aqueles que ouvem –, instigada pelo mensageiro (orador), porta-voz da revelação, que julgará e experimentará se as promessas de vida eterna ou danação são criveis, consistentes ou no mínimo verossímeis. Excetuando-se o Evangelho de João, a linguagem do Evangelho de Tomé, contrastada com a dos sinóticos, é ricamente metafórica e imagística.
Os evangelhos sinóticos são narrativas lineares. No Evangelho de Tomé, impera o duplo sentido, e não a clareza, e a suprema virtude é a obscuridade, a ambiguidade, o traço enigmático, o caráter alusivo. Nele, a amplificação é constante e tonitruante. A hipérbole, por sua vez, é o mais constante dos recursos.
Aqui e agora
Tomé é um evangelho que troveja para os eleitos, enquanto os sinóticos murmuram para os mansos. Nessa medida, se ajustaria perfeitamente ao modelo da retórica cristã radical do gênero deliberativo. Radical pelos motivos já expostos: uso obstinado do paradoxo e de enigmas, da fluidez de sentidos e da subordinação do logos ao pathos.
Quanto ao gênero, embora haja ao longo do texto encômios e censuras, defesas e acusações, o Evangelho de Tomé é nitidamente uma peça de retórica deliberativa, à semelhança do Sermão da Montanha – com sinal trocado, sim, mas a mesma intenção de tirar o ouvinte da inércia e fazê-lo decidir-se. O mais curioso, porém , é que o tempo do Evangelho de Tomé é o tempo presente, o “aqui e agora”.
Este traço é o oposto simétrico dos sinóticos, que acenam ao tempo futuro, ao Juízo Final, a uma recompensa e justiça adiadas, promessas. São duas escatologias bem distintas: nos canônicos ela é jogada para o dia que virá; em Tomé, ela está fincada no momento atual, pois é a mensagem central do Evangelho de Tomé é a de que o Reino está entre nós e já foi realizado – só não vê quem é cego ou tolo.
O modo dominante do Evangelho de Tomé é o da exortação (amplificando a persuasão) e o da dissuasão: exortação ao conhecimento de si mesmo como conhecimento do Deus interior (e, se há Deus interior, basta despertá-lo já; nada de esperar pela ressurreição). Além da exortação, é marcante a dissuasão da observância dos preceitos judaicos ultrapassados, considerados mera formalidade vazia.
O intuito do Evangelho de Tomé é incitar o ouvinte à ação, num tempo terreno. O núcleo dessa exortação é sempre o do auto-interesse, honroso, honesto, elevado, mas de qualquer modo sempre interesse pessoal visando benefícios bastante imediatos: a salvação e participação em Deus ainda durante a vida.
Alguns expedientes são mencionados para se alcançar esta meta: falar a verdade, tratar o próximo como a si mesmo, reconhecer a própria natureza interior como divinizada. A recompensa (corolário do gênero deliberativo) está sempre no horizonte, e o modo prático de obtê-la, embora um tanto velado e complicado, nunca é perdido de vista.
Persuasão, modo de usar
Para melhor exemplificar a força persuasiva, irretrucável, do discurso e da retórica cristãos, valeria percorrer seis etapas, os seis passos elementares a serem cumpridos num exercício de crítica retórica, sem esquecer que uma de suas (talvez a mais temerária e, por isso, fecunda) intenções é tentar acercar-se do possível efeito do texto em seus ouvintes coetâneos.
Esquematicamente, os passos de análise e reapropriação do texto seriam os seguintes: (i) Determinar a unidade retórica: qual o perikope, a seção, o grupo de estrofes, enfim, que se vai estudar. É importante que o trecho selecionado possua começo/meio/fim, um andamento próprio. E que prováveis acréscimos e interpolações sejam detectados e afastados.
(ii) Delimitar a situação retórica: o correspondente ao Sitz im Leben, a “circunstân-cia/situação” do criticismo formal: a quem o texto se dirige? o que os ouvintes supostamente esperavam dele?.
(iii) Descobrir se há algum problema ou inconsistência retórica relevante, isto é, se há obstáculos a serem transpostos logo de partida. Os mais comuns são incredulidade ou preconceito por parte da audiência, algo que deve ser solucionado logo no início do discurso – e que, portanto, vai colorir todo o tratamento da unidade retórica. (iv) Qual a stasis (questão básica do caso): fato, definição, qualidade e jurisdição. (v) A que gênero o texto pertence?
Uma vez definidas as etapas anteriores, deve-se proceder ao arranjo do material, da seguinte forma: Invenção: provas externas e provas internas (ethos, pathos, logos); topos comuns; materiais e estratégicos. Estilo: lexis (uso de arcaísmos ou neologismos; uso de tropos) e synthesis (figuras como anáfora, antítese, apóstrofe, chiasmus, ergasia, clímax). Conclusão: A análise detalhada do material deve, ao final, mostrar consistência com a unidade e situação retóricas propostas.
*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).
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