País vive campanha presidencial depois de duas constituintes que fracassaram, situação embala candidaturas de extrema direita



Mauricio Leandro Osorio 
operamundi.uol.com.br
6–8 minutos

Há exatos seis anos, em outubro de 2019, milhões de chilenas e chilenas foram às ruas e impulsionaram uma onda de manifestações quase diárias defendendo o fim do sistema de previdência e a realização de uma assembleia constituinte para substituir a atual carta magna do país, que foi imposta em 1980 pelo ditador Augusto Pinochet.

Seis anos depois, a lembrança das grandes manifestações de 2019 paira no ambiente do país junto com certo sentimento de frustração, já que tanto o sistema de previdência privada quanto a Constituição da ditadura continuam vigentes, e o país vive uma campanha eleitoral presidencial para escolher o sucessor de um governo de esquerda, de Gabriel Boric, que foi eleito em 2021 prometendo dar respostas àquelas demandas, mas sem sucesso.

Segundo alguns analistas, esse desencanto com as demandas da revolta social que não foram devidamente resolvidas na esfera política é um dos fatores que embala o discurso de uma extrema direita que mantém três candidaturas entre as quatro primeiras colocadas nas pesquisas, ainda que a candidata que apareça liderando – com uma vantagem pequena, no entanto – seja a governista Jeannette Jara, do Partido Comunista.
 

Do ciclo de protestos ao acordão político

Para o historiador Lucas Schiappacasse, pesquisador da Universidade do Chile e mestre em Comunicação Política, a revolta de 2019 foi, “o culminar de um ciclo histórico de mobilizações iniciado na transição democrática, após o fim da ditadura (entre 1988 e 1990), mas também um umbral para novas formas de ação política”.

Em exclusiva a Opera Mundi, o investigador disse que os protestos não devem ser lidos como um processo que levou a uma ruptura total do ordenamento político e institucional do Chile, mas sim como “uma mutação nas formas de reivindicação, adaptada a um Estado que não responde às dinâmicas tecnológicas e culturais da sociedade contemporânea”.

Revolta social de 2019 mobilizou milhões de pessoas em todo o Chile Centro de Estudos Francisco Bilbao
Revolta social de 2019 mobilizou milhões de pessoas em todo o Chile
Centro de Estudos Francisco Bilbao
 


Ademais, o acadêmico critica a maneira como o governo do presidente Gabriel Boric e seu conglomerado institucionalizaram esse impulso.

“O progressismo e a revolta foram movimentos opostos. A política institucional tentou domesticar o conflito social e terminou aprovando leis repressivas, acabou reproduzindo a lógica da ‘democracia protegida’, que foi instalada no país, por Jaime Guzmán, principal ideólogo da ditadura, e parece que essa é o único tipo de democracia que os partidos de hoje em dia conhecem, até mesmo os de esquerda”, analisou.

Uma Constituição mais frágil que nunca

Entre 2020 e 2025, mesmo com uma pandemia no meio do caminho, o Chile promoveu dois processos constitucionais, ambos com formação de assembleias constituintes, algo que nunca havia acontecido antes na história do país. Porém, ambos produziram textos que foram rejeitados pela população em seus plebiscitos finais.

O fracasso dos dois processos constituintes deixou o país na mesma situação de 2019, regido pela Constituição herdada da ditadura. Para Schiappacasse, o cenário é contraditório, porque a carta magna ainda vigente acabou sendo legitimada indiretamente, ao mesmo tempo em que foi enfraquecida por pequenas reformas aprovadas no Congresso nos últimos anos.

Uma dessas mudanças é o fim do quórum mínimo de dois terços para reformas constitucionais, mecanismo que impediu boa parte das transformações propostas pelos seis governos de centro-esquerda que o país teve desde 1990 até hoje.

Porém, daí surge outra contradição: o que se pretendia uma abertura para mudanças mais progressistas pode acabar favorecendo a direita ou a extrema direita, caso o setor eleja uma maioria nas eleições deste ano, que também renovará toda a Câmara dos Deputados e metade do Senado.

“O duplo fracasso constitucional foi uma derrota para os movimentos sociais e para qualquer imaginação política fora da democracia protegida. O progressismo acreditou que poderia administrar a agitação, mas acabou desativando seu potencial transformador”, comentou o historiador.


Para Lucas Schiappacasse, revolta de 2019 no Chile foi ‘o culminar de um ciclo histórico de mobilizações iniciado na transição democrática, mas também um umbral para novas formas de ação política’ Arquivo pessoal
Para Lucas Schiappacasse, revolta de 2019 no Chile foi ‘o culminar de um ciclo histórico de mobilizações iniciado na transição democrática, mas também um umbral para novas formas de ação política’
Arquivo pessoal


Juventude sem epopeia, política sem narrativa

Vale lembrar que o movimento que deu início à revolta social de 2019 foi o dos estudantes secundaristas, razão pela qual grande parte dos jovens que iniciaram os protestos configura, atualmente, uma geração cujas idades variam entre 23 e 28 anos.

O pesquisador Lucas Schiappacasse alerta para a frustração gerada pela esquerda especialmente nessa faixa etária, e em como os setores progressistas não foram capazes de manter as esperanças dessa juventude de que uma mudança radical no país poderia ser possível.

“As revoltas não morrem, elas se transformam. O que vemos hoje é sua derrota temporária, e o curioso é que ela é produto de uma legislação antiprotesto que foi criada por um governo progressista que, uma vez no poder, passou a tentar neutralizar os anseios da população”, frisou o acadêmico.

Schiappacasse conclui sua análise do cenário com uma leitura ampla do contexto latino-americano, e afirmando que “as revoltas latino-americanas respondem às crises cíclicas do neoliberalismo. Se a esquerda confunde governabilidade com transformação, repete o erro de acreditar que administrar o sistema é suficiente”.

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