Desde 2008, a democracia liberal administra a crise estreitando mediações, normalizando exceções e abrindo espaço para a pressão permanente da extrema-direita

É sempre prudente tomar cuidado com os conceitos, sobretudo quando passam a circular com rapidez excessiva e pouca precisão. A crise de 2008, detonada pela explosão da super-bolha imobiliária, pode ser entendida como um ponto de inflexão decisivo. Não apenas um colapso financeiro de grandes proporções, mas a ruptura de um arranjo de governabilidade que sustentava a democracia liberal em suas diferentes dimensões. A partir dali, tornou-se mais difícil sustentar a ideia de que mercado, representação política e estabilidade institucional formariam um sistema capaz de se manter de forma relativamente estável.

Em contextos de crise prolongada do capital, o liberalismo passa a operar com menor capacidade de organizar o mundo social de forma consistente. Suas promessas seguem presentes no discurso público, mas deixam de oferecer mediações eficazes para a experiência material das maiorias. As instituições continuam funcionando, enquanto seus mecanismos de absorção do conflito social se tornam progressivamente mais estreitos e seletivos.

Edifício Sede da Presidência da República Palácio do Planalto sofre destruição nos atos golpistas do dia 08 de janeiro de 2023. <br> (Foto : Cadu Gomes/VPR)

Edifício Sede da Presidência da República Palácio do Planalto sofre destruição nos atos golpistas do dia 08 de janeiro de 2023.
(Foto : Cadu Gomes/VPR)

É nesse movimento que o desgaste do regime se torna observável em arranjos institucionais específicos. Estados Unidos, Brasil e França aparecem aqui como exemplos complementares de um mesmo processo histórico, no qual a democracia burguesa se reconfigura para administrar a crise em contextos políticos, jurídicos e sociais distintos.

Nos Estados Unidos, essa corrosão se manifesta no papel estrutural atribuído ao Judiciário dentro do capitalismo avançado. A Suprema Corte sempre integrou a engrenagem de estabilização da ordem liberal, atuando para limitar o alcance das decisões produzidas pelo ciclo eleitoral quando estas ameaçavam deslocamentos materiais mais profundos. Essa função se intensificou à medida que o sistema político passou a operar sob bloqueios prolongados e com crescente incapacidade do Legislativo de responder às pressões sociais acumuladas.

Nas últimas décadas, o Judiciário consolidou-se como instância permanente de definição dos limites da ação política. Decisões judiciais passaram a fixar parâmetros duradouros para políticas públicas, direitos sociais e formas de regulação econômica, reduzindo a margem de variação produzida pelas disputas eleitorais. Esse funcionamento responde a uma racionalidade de classe, voltada à preservação de condições estáveis de acumulação em um cenário de conflito social persistente e de erosão da legitimidade representativa. O Legislativo continua legislando dentro de fronteiras previamente demarcadas, o Executivo governa ajustando suas ações a limites já consolidados, e a soberania popular passa por filtros institucionais que restringem sua capacidade de produzir transformação substantiva.



No Brasil, a corrosão institucional assume uma forma mais difusa, marcada pela combinação entre esvaziamento deliberado do Legislativo, judicialização recorrente da política e reorganização opaca do orçamento público. O Congresso Nacional preserva sua centralidade formal, mas opera cada vez menos como espaço de deliberação substantiva. Conflitos estruturais são evitados, adiados ou convertidos em textos legais ambíguos, produzidos para não decidir. Esse modo de funcionamento desloca a política para fora da arena pública, enquanto mantém intacta a coreografia institucional.

O orçamento secreto desempenhou papel decisivo nesse rearranjo. Ao permitir a distribuição de recursos públicos sem transparência, sem identificação clara de autoria e sem controle administrativo efetivo, instituiu-se um regime de exceção orçamentária no interior do Estado. Não se trata apenas de opacidade, mas de um mecanismo que abriu espaço sistemático para práticas incompatíveis com a administração pública, incorporadas ao funcionamento regular do sistema. O Legislativo ampliou sua capacidade de barganha material por meio de um instrumento que operava no limite e, em muitos casos, para além da legalidade. O Executivo passou a governar dependente desse arranjo, aceitando a convivência com ilegalidades funcionais como condição de governabilidade. O Judiciário interveio de forma tardia e fragmentada, quando os efeitos políticos e materiais já estavam consolidados.

Na França, a corrosão do equilíbrio institucional segue outra trajetória, marcada pela concentração progressiva da capacidade decisória no Executivo. O uso recorrente do artigo 49.3 da Constituição tornou-se instrumento ordinário para a implementação de reformas econômicas e sociais em um contexto de resistência social persistente. Decisões centrais passaram a ser tomadas sem mediação parlamentar efetiva, reduzindo o papel do Legislativo a uma instância secundária no processo decisório. O Judiciário valida os procedimentos, garantindo sua conformidade formal, enquanto o conflito social se desloca para fora das instituições e passa a ser administrado como problema de ordem pública.

Esses rearranjos não produzem automaticamente a hegemonia da extrema-direita. O que constroem é uma pista política suficientemente larga para que essas forças atuem como vetor permanente de desestabilização. Ao estreitar canais de deliberação, deslocar decisões para zonas opacas, normalizar exceções legais e incorporar ilegalidades funcionais, a democracia burguesa cria um ambiente no qual a extrema-direita ganha densidade sem assumir plenamente o comando. Ela atua como força de pressão contínua, ameaça latente e instrumento de chantagem difusa, tensionando o sistema enquanto contribui para preservar o núcleo da acumulação capitalista.

Em geral, essa dinâmica é administrada pelas próprias instituições, que tratam a instabilidade como variável controlável. Em certos momentos, essa tutela perde eficácia. Quando os mecanismos de contenção falham, essas forças ampliam sua autonomia política e sua capacidade de intervenção direta. É nesse ponto que se coloca a questão conceitual. Fascismo e neofascismo funcionam hoje mais como referências herdadas do que como categorias plenamente adequadas para dar conta do que está em formação. A crise pode engendrar algo distinto, com outra escala, outra gramática e outro enraizamento social, tornando anacrônicos termos forjados em contextos históricos diversos.

O problema, portanto, não está no nome que se atribui a essas forças, mas no efeito histórico que esse conjunto de rearranjos institucionais é capaz de produzir. O capital preserva sua hegemonia administrando instabilidades, recalibrando instituições e aceitando níveis variáveis de desorganização política como parte do custo de sua reprodução. Em muitos momentos, esse manejo se sustenta. Em outros, perde eficácia. É nessas falhas que emergem forças capazes de reorganizar o campo político de maneiras ainda incertas. O cenário permanece aberto. Não há garantias, nem atalhos conceituais seguros. Ainda assim, o fato de que o futuro não esteja escrito – e de que as categorias herdadas já não deem conta do presente – não autoriza a resignação. Exige atenção, engajamento e a recusa em aceitar como inevitável aquilo que ainda está em disputa.

(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.

Publicado originalmente por: Opera Mundi

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