Hoje, quase 50% da população depende de tarifa social para consumir e cerca de 20% dos consumidores de distribuição estão inadimplentes.

Em defesa da energia para todos
Os resultados das privatizações costumam ser analisados a partir da perspectiva dos investidores e dos acionistas. Como se trata da empresa pilar do setor elétrico brasileiro, nesta nota focamos nos resultados para os consumidores – toda a sociedade brasileira, os empregados e sindicatos, os administradores, o grau de concentração econômica no setor e a União. Lembramos que a Constituição Brasileira de 1988 estabelece que a segurança de abastecimento é de responsabilidade do Governo.
Ao longo dos últimos meses, o tema da Eletrobras voltou a ocupar o noticiário nacional. Isso se deu por quatro motivos:
i. Distribuição extraordinária de dividendos de R$ 8,3 bi – Foram aprovados por unanimidade pelo Conselho de Administração (CA), já ocupado por três integrantes dos representantes do governo, em duas tranches de R$ 4,0 bi e R$ 4,3 bi respectivamente;
ii. Crescimento rápido do valor das ações da Eletrobras, turbinado por um agressivo programa de recompra de ações pela própria empresa – No acumulado do ano, o valor passou de R$ 37,68 para R$ 65,98 para a ELET6 (+ 75%) e de R$ 31,87 para R$ 61,56 para a ELET3 (+ 93%);
iii. Homologação do acordo sobre poder de voto da União na empresa no Superior Tribunal Federal com divergências apontadas nos votos dos Ministros em relação ao Ministro Relator. Lesão aos interesses da União;
iv. Engenharia financeira agrava prejuízo à União e ao povo brasileiro – Aprovação em Assembleia-Geral Extraordinária (AGE) realizada em 19.12.2025 de distribuição de dividendos a partir dos lucros retidos. A manobra evita pagamento de impostos sobre os dividendos e promove migração para o Novo Mercado, com criação de novas classes de ações.
Como alertaram os trabalhadores e o Instituto Ilumina, a capitalização da empresa deveria promover uma “redução sustentável das tarifas do longo prazo” e “contribuir para o crescimento econômico e geração de empregos” no Brasil. Nada disso se verifica. Alertamos que o aumento de tarifas ocorreria em consequência dos efeitos da descotização da energia gerada pelas usinas já amortizadas, impedindo que a energia mais barata do mercado fosse destinada aos consumidores das distribuidoras. A descotização promoveu rompimento unilateral de contrato estabelecido com as distribuidoras, em benefício aos seus consumidores no mercado regulado (ACR), até 2043. Seus impactos foram significativos e imediatos também no mercado livre (ACL), onde foi disponibilizada mais energia. A migração deu à Eletrobras ainda mais controle do mercado, permitindo que ela determine com mais facilidade preços de curto, médio e longo prazo.
Os resultados da Axia (ex-Eletrobras) divergem do que foi preconizado na Cartilha do Ministério das Minas e Energia (MME) à época da privatização, pelo Governo Bolsonaro. A exposição de motivos que pressionava pela privatização defendia que a capitalização da empresa era essencial para que pudesse investir e participar da expansão do setor elétrico brasileiro . Segue abaixo um trecho:
(…)Para aproveitar essa oportunidade, e apenas para garantir a sua atual participação de mercado, a Eletrobras precisaria contar com recursos para investir acima de R$ 14 bilhões por ano (Cartilha MME, fevereiro de 2021:1).
Neste contexto, para respeitar o prometido à época da privatização, de junho de 2022 até o final de 2025, os investimentos da Eletrobras deveriam alcançar cerca de R$ 49 bilhões desde a capitalização (R$ 7 bi, em 2022; R$ 14 bi em 2023; R$ 14 bi em 2024, e R$ 14 bi em 2025). No entanto, desde a capitalização, a Eletrobras investiu cerca de R$ 10,5 bi em novas capacidades para o sistema elétrico nacional, apenas 21,4% do prometido na cartilha.
Uma análise da gestão financeira da Axia após a privatização explicita o receituário clássico de uma empresa focada em dividendos para os acionistas no curto prazo, redução de risco e aumento de lucros por meio de:
- Baixa propensão para novos investimentos;
- Preferência pela compra de ativos prontos e já em operação comercial;
- Volumosa distribuição de dividendos com a presença cada vez maior de dividendos intercalares e intermediários. Já foram distribuídos mais de R$;15,8 bi de dividendos, cerca de 50% a mais do que foi destinado para investimentos em novas capacidades;
- Aceleração do endividamento mediante emissão recorde de debêntures. Axia, Chesf, Eletronorte e Eletrosul emitiram R$ 32,3 bilhões em novas dívidas. Há preocupação em relação a solvência de longo prazo, pois o volume de investimentos em novos ativos está bem abaixo da distribuição de riqueza aos acionistas;
- Adoção de ousado programa de recompra de ações para manter os preços crescentes dos papéis e alocar papéis em Tesouraria. A Eletrobras gastou R$ 3,2 bilhões na recompra de ações, aumentando a remuneração variável de diretores, conselheiros e gerentes da empresa;
- Bônus generosos para executivos. A Diretoria Executiva teve um programa de remuneração global de em média R$ 6 milhões por ano para cada um dos seus 11 diretores. Já os 10 conselheiros da empresa, que realizam reuniões esporádicas, receberam uma média de R$ 1,4 milhões por ano, com variações de remuneração entre os componentes dos colegiados;
- Demissões em massa de trabalhadores concursados que, desde os planos de demissão da época da privatização até os dias atuais já totalizam mais de 5 mil. A contratação de empregados mais novos tem causado uma “juniorização” crescente da Eletrobras com a consequente perda da memória técnica e expertise da empresa.
Na capitalização da empresa, a União recebeu R$ 25 bi de bônus de outorga e perdeu o controle da empresa. A reengenharia financeira aprovada na AGE realizada em 19.12.2025 capitalizou R$ 39,9 bi de lucros retidos, dos quais R$ 30,9 bi, ou seja, 77,4% do total, já estavam contabilizados quando o Estado era controlador da empresa. Em outras palavras, foi dada aos demais acionistas a prerrogativa de gerir a destinação dos lucros retidos, objeto da AGE, em um patamar muito superior ao próprio bônus de outorga. A Eletrobras não tinha “esqueletos” no armário e sim “potes de ouro” quando foi privatizada a preço irrisório e sem contrapartidas que assegurassem que a empresa iria honrar o plano de investimentos produtivos previstos. Fica claro que, desde que a empresa com maior poder de mercado do setor elétrico perdeu sua função pública, passou a ter por objetivo apenas os interesses financeiros de curto prazo de seus acionistas.
O sucateamento das empresas privatizadas em setor estratégico e essencial para a sociedade provoca a degradação do serviço prestado e desestrutura o tecido econômico e social do País. Enquanto o mercado só olha para o aumento do lucro da empresa, deve-se balizar a discussão sobre a gestão da empresa privatizada pelo que importa à população brasileira, ou seja, com base na qualidade do serviço prestado e na modicidade tarifária. Hoje, quase 50% da população brasileira depende de tarifa social para consumir e cerca de 20% dos consumidores de distribuição estão inadimplentes. A expansão do setor pensada pelos investidores agrava o problema. Sem coordenação, não há uso eficiente dos recursos energéticos, e a tarifa aumenta.
O voto contrário da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional na proposta da AGE de 19.12.2025 explicita a desorganização estrutural do atual governo no setor. Afinal, algumas semanas antes, os três representantes da União do CA haviam aprovado a proposta de capitalização da reserva de lucros que distribui dividendos e reduz investimentos produtivos.
O atual governo demonstra desprezo, ou falta de compreensão, por questões de segurança energética, desenvolvimento nacional e regional e redução das desigualdades socioeconômicas. Ao se associar a agenda de financeirização agressiva da Axia. As cadeiras do governo no CA aprovaram todas as medidas da Diretoria Executiva da Axia: recompra de ações, emissões de debêntures, distribuição recorde de dividendos e uso de lucros retidos para distribuição de dividendos via ações resgatáveis. O volume de investimento continua baixíssimo perto do que foi prometido junto às Casas Legislativas para aprovar a privatização.
O governo Lula III precisa mudar radicalmente sua gestão no setor elétrico, se pretende promover a retomada de um projeto de desenvolvimento nacional estruturado. A Axia detém ativos estratégicos para o setor, com capacidade de determinar o nível de preços da eletricidade e o sucesso de uma política de transição energética justa: reservatórios e linhas de transmissão utilizados de forma coordenada para garantir a segurança de abastecimento e promover a expansão, a descarbonização e a modicidade tarifária do setor. O Estado brasileiro não pode continuar sem nenhum poder a gestão da empresa em que detém mais de 43% das ações ordinárias. A utilização desses ativos da União deve imperativamente ser regida por uma política energética soberana que reflita um compromisso dos governantes e legisladores com o povo brasileiro. O desenvolvimento econômico e social do País passa por uma transição energética justa e sustentável e depende de acesso à energia limpa, segura e acessível para a população.
Diretoria do Instituto Ilumina
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Publicado originalmente por: GGN
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