Pesquisa do Geni-UFF e do Instituto Fogo Cruzado mostra que controle de grupos armados concentra-se em áreas negras e pobres. Para pesquisadores, violência é “elemento constitutivo da produção e manutenção das desigualdades sociais”


Pessoas passam de moto na praça da Vila Cruzeiro ao lado de barricadas que foram colocadas para conter avanço de policiais durante a Operação Contenção | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Pessoas passam de moto na praça da Vila Cruzeiro ao lado de barricadas que foram colocadas para conter avanço de policiais durante a Operação Contenção | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A área total submetida à atuação de grupos criminosos armados na região metropolitana do Rio de Janeiro mais do que dobrou ao longo dos últimos 18 anos. No período, as milícias puderam avançar sobre novos territórios, impulsionadas por políticas e investimentos de Estado, enquanto facções de tráfico seguiram em expansão mesmo sob repressão estatal orientada por operações policiais.

Esse cenário é evidenciado pelo recém-lançado Mapa Histórico dos Grupos Armados 2025, a versão mais recente de um estudo produzido desde 2018 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) em parceria com o Instituto Fogo Cruzado (IFC). A publicação refaz uma série histórica da expansão do controle armado na região metropolitana do Rio, com marcos e ciclos diretamente ligados a conjunturas políticas, econômicas e institucionais.

Em 2024, 14% da malha urbana da região e 29,7% da população (o equivalente a 3,4 milhões de pessoas) estavam sob controle de grupos armados, o que o estudo identificou ao geocodificar e analisar relatos do Disque Denúncia, além de validá-los junto a publicações da imprensa e da literatura especializada. Já outros 4,1% do território e 5,3% dos moradores (cerca de 603 mil) viviam sob influência desses grupos.

A pesquisa diferencia o controle da influência. No primeiro caso, o grupo armado, simultaneamente, extrai recursos econômicos de mercados legais ou ilegais no território controlado, dita normas de conduta e sustenta isso por meio do uso da força. Já a segunda situação seria um controle insuficiente ou intermitente — ou seja, as condições são parecidas, mas com menor intensidade e de modo irregular. Em comparação com 2007, de início da série histórica, a área total sob atuação desses grupos cresceu 130,4% até o ano passado (aumento de 98,4% do controle e de 420,1% da influência). Já a população sob jugo das facções e milícias subiu 59,4% (expansão de 43,6% controle e de 317,7% da influência).

Expansão das milícias com políticas de Estado

Os grupos que tiveram a maior expansão nesse período foram as milícias. O território sob controle delas aumentou em 315% (103 km²). Se somadas as áreas de influência, a expansão foi de 501% (168 km²). Atuamente, os milicianos configuram o grupo com maior atuação armada na região metropolitana em termos de extensão territorial: estão à frente de 49,4% das áreas dominadas (201 km²).

O maior salto dos milicianos — ou o que o estudo chama de “a grande expansão” — ocorreu entre 2016 e 2020, ocasião em que houve um aumento médio anual de 7,9% da área sob controle e influência de grupos armados. O avanço das milícias se deu, principalmente, na forma de colonização, como o estudo classifica a expansão para áreas onde até então não atuava grupo algum.

São colonizados, em geral, os territórios de baixa densidade populacional, onde os grupos armados passam a atuar como agentes de organização territorial. Nesses espaços, milicianos controlam a venda de lotes, a construção imobiliária e a oferta de serviços de infraestrutura urbana, acompanhando ou mesmo se antecipando ao avanço da malha urbana. Ou seja, o Estado foi fundamental nesse avanço.

“De forma mais precisa, a ‘grande expansão’ (2016-2020) nos parece ser resultante de um momento que conjugou oportunidades nos mercados de terras e ampliação de serviços de infraestrutura urbana, sobretudo devido aos investimentos associados aos megaeventos, como também de maior disfuncionalidade estatal, com a falência [fiscal] do Estado, o desmantelamento das UPP’s [Unidades de Polícia Pacificadora] e do sistema de metas [da Secretaria da Segurança Pública fluminense], além da desastrosa intervenção federal na segurança pública do Estado”, argumentam os autores.

Mapa do domínio de grupos armados na região metropolitana do Rio de Janeiro | Imagem: Mapa Histórico dos Grupos Armados – Geni/UFF e IFC
Mapa do domínio de grupos armados na região metropolitana do Rio de Janeiro | Imagem: Mapa Histórico dos Grupos Armados – Geni/UFF e IFC

Avanço do CV mesmo sob operações policiais

Se considerados apenas os territórios controlados, o grupo com maior domínio é o Comando Vermelho (CV), à frente de 47,5% deles (150 km²). Em 2024, a facção ainda liderava o domínio sobre pessoas, em ameaça a 44,7% da população sob controle ou influência de algum grupo (1,8 milhão de habitantes).

O CV manteve uma expansão constante ao longo da série histórica, ainda que em menor ritmo que as milícias. O principal modo de domínio da facção foi o da conquista, que, diferentemente da colonização, exige a expulsão de um grupo armado já atuante no território a ser cooptado, conforme define o estudo.

Os autores da pesquisa destacam que a política repressiva centrada em operações policiais nas últimas décadas não conteve as facções. Eles também levantam a hipótese de que o projeto das UPP’s, que instalou bases policiais em comunidades na capital do estado, impulsonou a expansão dos grupos criminosos dedicados ao tráfico de drogas — casos do Terceiro Comando Puro (TCP) e do Amigos dos Amigos (ADA), para além do CV — também para a Baixada e o Leste Fluminense.

“Na ocasião de ocupação de territórios pela polícia, integrantes das facções que possuíam mandado de prisão em aberto refugiaram-se em outras áreas da RMRJ e do interior do estado, lá estabelecendo novos negócios, sem que o domínio sobre as áreas ocupadas fosse prejudicado. Esta variação veio a se somar ao crescimento contínuo desse modelo de organização”, descrevem.

Violência no Rio é vetor que aprofunda desigualdades

O mapa produzido pelo Geni-UFF e o Instituto Fogo Cruzado ainda expõe em números uma percepção antiga de moradores: o domínio de grupos armados assola principalmente populações pobres e negras. Nas áreas sob controle, a renda média per capita é de R$ 1.121. Onde não há grupos armados, isso está em R$ 1.658. Especificamente na capital, os territórios controlados têm renda média de R$ 1.267 e os não controlados, de R$ 3.521 — ou seja, quem vive em áreas livres no Rio ganha quase três vezes mais.

Quanto ao recorte racial, os territórios sob controle armado têm composição média de 69,1% de pessoas não brancas (pretas, pardas e indígenas), contra 55,2% nas áreas não controladas. Na Zona Sul e no Centro da capital fluminense, regiões historicamente marcadas pela concentração de renda e pela segregação racial, conforme descreve o estudo, a diferença é ainda maior: são 68,3% de não brancos nas áreas dominadas, contra apenas 25,9% nas áreas livres de grupos armados.

“O controle territorial e populacional deve ser concebido, portanto, não apenas como consequência, mas também como elemento constitutivo da produção e manutenção das desigualdades sociais”, apontam.

Gradual retração de áreas sob domínio de grupos armados

Os autores ainda descrevem na pesquisa que, desde 2020, houve uma retração gradual do território total sob domínio de grupos armados, com redução anual de 2,3% da malha sob controle ou influência. O fenômeno foi puxado pelas milícias, que perderam 45,2 km² de áreas sob seu domínio (dos quais 26,6 km² de controle e 18,6 km² de influência), enquanto o CV e o TCP seguiram em expansão.

Para os pesquisadores, isso parece estar associado à atuação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) na Operação Intocáveis e em seus desdobramentos, que tiveram como alvos centenas de membros das maiores milícias do estado. “A morte do miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, produziu também disputas sucessórias e segmentações nas milícias e, dentre outros fatores, favoreceu o avanço do Comando Vermelho para certas áreas”, escrevem no estudo.

Eles também apontam que, desde 2020, houve uma reversão do predomínio da expansão por colonização em detrimento da conquista, o que deve voltar atenção de grupos armados para áreas de grande densidade demográfica. “É importante, finalmente, destacar que esta tendência atual não é necessariamente definitiva. Na RMRJ ainda existe uma margem bastante significativa de espaços com baixa densidade demográfica “disponíveis” para colonização por grupos armados nas fronteiras urbanas, que precisam ser protegidos pelo Estado contra possíveis avanços num futuro próximo.”

Publicado originalmente por: Ponte Jornalismo

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