Dilma no governo
por Marcos Coimbra, na CartaCapital
Neste começo de ano, a imprensa mostra que tem, para com a presidente Dilma, dificuldades parecidas com as que teve para com a candidata e a presidente eleita. É visível o desconforto que ela causa com seu discurso e suas ações. Enquanto a mídia quer que ela tire coelhos da cartola e surpreenda todo mundo, Dilma insiste em ser previsível.
A causa dos problemas é conhecida: a ideia de continuidade. Até agora nossos analistas não conseguiram entender o que significa uma coisa tão simples.
O tom geral da cobertura tem sido um misto de ânsia de encontrar a originalidade do governo e frustração por não conseguir identificá-la. É como se Dilma tivesse a obrigação de ser diferente, e, não o sendo, se tornasse uma “decepção”.
Nossa cultura política valoriza os elementos pessoais das lideranças, mitificando seus atributos e qualidades. Nos é difícil aceitar que elas não tenham traços que as distingam do cidadão comum, que as diferenciem da vida banal dos meros mortais. Para nós, o verdadeiro líder está além do povo, é feito de outra essência e possui uma transcendência inalcançável por ele.
No Brasil moderno, os três presidentes eleitos se apresentaram ao País como figuras excepcionais. Cada um a seu modo e tempo, Collor, Fernando Henrique e Lula foram assim caracterizados por suas campanhas e pela mídia, e foram assim percebidos pelas pessoas. Todos se tornaram personagens épicos.
Importa pouco como cada um terminou. Se Collor, de “jovem caçador destemido”, acabou cassado. Se a “inteligência portentosa” de Fernando Henrique, que o levou a derrotar a inflação, não o livrou do fracasso dos últimos anos. Se Lula, de metalúrgico nordestino “sincero, porém radical”, revelou-se um grande presidente, na opinião quase unânime dos brasileiros.
O relevante é que todos eram “extraordinários”. Até aqueles que chegaram ao posto pela força das circunstâncias vieram a ser assim percebidos, ao menos por alguns, pelo menos durante certos momentos. Mesmo Sarney e Itamar tiveram seus dias de carisma.
Nesse modelo, a transição de um governo para outro sempre foi uma espécie de batalha (ainda que civilizada), cujo ápice eram os discursos de posse. Por meio deles, o novo presidente revelava quão diferente seria do anterior, em meio a frases de efeito e rompantes de eloquência. Não por outra razão, esses discursos precisavam ser esquadrinhados minuciosamente.
Nas eleições de 2010, Lula propôs outro enredo. Em vez de procurar no PT quem mais pudesse encarnar uma nova personalidade mitológica, pensou em alguém com qualidades terrenas. No lugar de imaginar uma agenda de campanha que acenasse para os sonhos, outra que todos conheciam, pois estava sendo implantada por seu governo.
Há quem veja a originalidade de Dilma no gênero, mas ela não é a mais importante. Por mais significativo que seja termos uma mulher na Presidência, a verdadeira mudança trazida por sua eleição não é essa. O decisivo é que Dilma rompe com o modelo da excepcionalidade do governante.
Para entender esse ponto, basta imaginar o que teríamos se Marina Silva tivesse vencido. Seria uma presidente mulher, mas que manteria ou, mais provavelmente, que acentuaria o arquétipo do presidente-herói (ou da presidente-heroína, tanto faz), de valorização das “biografias excepcionais”. Eleita, Marina representaria a consagração do carisma como fundamento da legitimidade presidencial.
Ninguém votou em Dilma sem saber o que ela diria no Congresso, na hora em que tomasse posse. Ninguém ficou ansioso querendo descobrir como seria seu ministério, ninguém aguardou revelações de seus ministros a respeito de novas políticas.
Em face da perplexidade da mídia, o curioso é que não há, no modo como começa o governo, nada de imprevisível. Foi isso que Dilma prometeu ao País, foi isso que ela disse que faria.
E foi isso que os eleitores entenderam e quiseram. O mais importante na eleição de Dilma é que seu caráter inovador foi submetido ao povo e por ele referendado. Foi o eleitor que quis que passássemos a ver que a Presidência da República pode ser ocupada por uma pessoa comum (desde, é claro, que seja qualificada e que represente o lado com o qual ele mais se identifica).
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