do Direto da Redação

Uma conhecida trocou de fogão e quis doar o antigo, ainda funcional, à igreja da Matriz, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Próxima à favela de Santa Marta, a igreja sempre abasteceu os moradores com objetos e roupas doados. Mas para surpresa de minha amiga, ao procurar o padre, foi informada que a igreja não poderia receber o fogão, porque o depórito já estava repleto. Segundo o padre, com o crescimento da economia e a oferta de crédito, as pessoas estão comprando eletrodomésticos novos e não precisam mais recorrer a objetos de segunda mão.

"Antigamente, os objetos não ficavam duas semanas aqui. Bastava a notícia circular que rapidamente apareciam interessados. Agora, estamos sem espaço", contou o padre, de sotaque estrangeiro, impressionado com a rápida transformação da realidade brasileira.

Um amigo também comentou recentemente que a empregada que trabalha há muitos anos em sua casa foi visitar a família que vive no Maranhão, e, pela primeira vez, usou o avião como meio de transporte. A passagem, parcelada, coube no orçamento dela e permitiu uma viagem rápida e mais confortável do que as que fazia de ônibus. Sua intenção é tornar as visitas mais regulares, sem o sacrifício de dias no interior de um ônibus, do Rio a São Luís.

Estas duas histórias ilustram bem a realidade do Brasil nos últimos anos, que está à nossa frente, mas que muitas vezes deixamos de ver por conta de uma suposta realidade apresentada pelos que não estavam acostumados a dividir os aeroportos com a população e que procuram questões econômicas e políticas para dizer que o país não funciona e corre risco. Podemos afirmar que o Brasil teria, então, duas realidades. Uma percebida pela maioria da população, satisfeita com os rumos que o país vem tomando nos últimos anos, e, outra, fabricada por uma minoria insatisfeita e saudosa de privilégios perdidos, que se esforça em fazer crer que os avanços não existem.

O problema para esta minoria é que o reconhecimento ao rumo adotado pelo Brasil não se limita aos pobres, que costumam considerar como ignorantes, mas a estudiosos daqui e de fora, que buscam conhecer cada vez mais as experiências sociais e econômicas, que levaram o país a colocar uma Argentina em termos de população na classe média. Um contingente que passou a ter mais renda, a fortalecer o mercado interno e a ajudar o país a ter condições de enfrentar as turbulências internacionais.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acaba de apresentar relatório, no qual destaca os "avanços extraordinários" do Brasil na última década, com uma redução da pobreza e da desigualdade "nunca vista". O Brasil virou referência de crescimento com distribuição de renda e sua atuação na crise econômica internacional iniciada em 2008, deixando de lado o receituário ortodoxo, despertou atenção sobre as possibilidades de uma alternativa ao fracassado modelo econômico global, que continua causando ruínas e despertando cada vez mais indignação.

Estes avanços e conquistas não significam que a condução do país só tem virtudes. O Brasil enfrenta sérias questões éticas na pólítica, que precisam ser atacadas de forma consequente tanto pelo governo, quanto pela população. Os casos de corrupção são uma afronta, mas sempre envolvem dois lados: o corrupto e o corruptor. Quem tem telhado de vidro não pode atirar pedra. Agora mesmo, uma pesquisa da Organização Internacional de Trabalho revelou o perfil de quem pratica o trabalho escravo no Brasil. O escravocrata do século 21 é branco, nasceu no Sudeste, tem curso superior e é filiado a partido político. A pesquisa apontou o PMDB, o PSDB e o PR como as legendas escolhidas.

Provavelmente, essa gente também critica os desvios existentes no governo como se fossem cidadãos decentes. Assim como odeiam o governo, e mais ainda a Lula, que já deixou de ser presidente, mas que continua magnetizando os rancores da elite, aquela contrária a uma estação de metrô em bairro chique de São Paulo. Devem integrar a legião dos supostos indignados os que furam fila no cinema e no teatro, os que oferecem dinheiro ao guarda quando flagrados em irregularidade e os que querem sempre levar vantagem em tudo, certo?

Precisamos avançar nas questões éticas simultaneamente às melhorias econômicas e sociais. Por outro lado, não podemos permitir que elas sejam utilizadas para causar paralisia no que vem dando certo e foi determinado pelo povo, por escolha democrática. O governo e a política não são os vilões da história, pois os desvios se espalham por todo o tecido social. Apenas estão mais expostos e sobre eles podemos exercer nossa influência. Um bom momento está colocado para tanto. Mas é preciso distinguir bem quem realmente está interessado no aprimoramento das instituições de quem só quer se valer da oportunidade para recuperar uma velha ordem.


Sobre o autor deste artigoMair Pena NetoJornalista carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de economia.

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