Mauro Santayana
Se, conforme o personagem de Guimarães Rosa, cada um de nós tem os seus seis meses, com as sociedades nacionais ocorre a mesma coisa. Em tempos recentes, e as causas são conhecidas, o Brasil passou por momentos amargos, e centenas de milhares de brasileiros se dispersaram pelo mundo – do Japão à Irlanda, de Portugal ao Canadá. Era a diáspora econômica, depois da diáspora política dos anos de chumbo.
Uma onda de xenofobia nos atingiu, principalmente na Península Ibérica. Em Portugal, país de que jamais poderíamos esperar uma atitude dessas, fomos rechaçados como leprosos morais. Foi necessária uma combinação diplomática hábil, entre firmeza e paciência, conduzida, nos momentos mais agudos, pelo Embaixador José Aparecido de Oliveira, que contou com as personalidades políticas mais responsáveis daquele país – entre elas e, em primeiro lugar, Mário Soares – a fim de que o repúdio aos brasileiros se amenizasse.
Dos espanhóis, a quem não nos ligavam os mesmos sentimentos afetivos, recebemos tratamento igual, mas que não nos doeu, naquele momento, tanto quanto o daqueles de quem herdamos a língua e a nossa forma de sentir o mundo.
Na época, muitos brasileiros lembraram, menos como cobrança histórica, mas com perplexidade, da acolhida que o nosso país sempre deu aos europeus, nas épocas de crise, principalmente aos portugueses, mesmo tendo sofrido, como havíamos sofrido, a brutalidade do colonialismo. Em toda a Europa, a situação foi semelhante. Registremos, com justiça, que - mesmo com o rigor de suas leis a respeito do assunto - nos Estados Unidos, no Japão, e no Canadá, os brasileiros não foram vistos com o mesmo desprezo que sofríamos na Europa.
Os ventos históricos movem as nossas velas, neste momento. As circunstâncias internas e externas, aproveitadas com inteligência pelo governo e pela sociedade brasileira, nos permitiram, até agora, fazer frente à crise internacional, e assegurar relativo crescimento ao país. Os que têm bom senso se esquivam de considerar essa situação como adquirida para sempre. Também contraria a nossa índole transformar os êxitos atuais em manifestações grosseiras de desforra. As lições da História não podem ser desprezadas.
Todos os povos são iguais. O sentimento de patriotismo é positivo, mas não pode ser exercido na xenofobia, no chauvinismo, no preconceito étnico. A nossa diplomacia sempre tratou com cautela o problema dos brasileiros no Exterior. Por um lado, em alguns governos, como os de Fernando Collor e Fernando Henrique, fomos conduzidos pelo complexo de inferioridade, e tentávamos entrar no convívio dos países maiores - como fazem os servidores contratados para as festas – pelas portas dos fundos.
Pelo outro, temíamos, ao tratar de tema tão delicado, que o nosso endurecimento pudesse provocar situações ainda mais difíceis aos nossos compatriotas no exterior. Depois que o Tratado de Schengen foi alterado pelos acordos de Lisboa, de 2007, a situação dos chamados extracomunitários na Europa se tornou ainda mais dramática. A Espanha, Portugal e a Itália exacerbaram o controle da entrada, em suas fronteiras, dos visitantes latino-americanos em geral - e dos brasileiros, em particular. E, convém registrar: o Aeroporto de Barajas, em Madri, destacou-se na brutalidade em reter os turistas brasileiros em suas instalações, principalmente os mais jovens, antes de devolvê-los, sob o látego da humilhação. Muitos eram algemados, e assim mantidos nas dependências policiais, sem comer, nem beber. Ao mesmo jejum eram submetidas as crianças retidas.
Em 2007, mais de 3.000 brasileiros já haviam sido repatriados dos aeroportos espanhóis, com um prejuízo, só em passagens, de mais de 6 milhões de dólares. Em 2008, foram 2.196. Em 2009, 1.714. Em setembro de 2010, ocorreu a segunda Reunião Consular de Alto Nível entre os dois países, mas nada mudou. Naquele ano foram expulsos mais 1.695 brasileiros.
O governo atual, que procura solucionar problemas antigos, entre eles, os da corrupção no Estado, decidiu reexaminar a questão. O Itamaraty vinha tentando, com a paciência tradicional da Casa, resolver o problema com as autoridades espanholas, sem qualquer êxito. Reuniões se fizeram em Madri e foram feitas promessas, nunca cumpridas.
Diante de tudo isso, a Chancelaria decidiu exercer, na defesa de nossos compatriotas, o direito e o dever da reciprocidade. A partir de dois de abril, os espanhóis que vierem ao Brasil deverão cumprir as mesmas exigências que as autoridades espanholas exigem dos visitantes brasileiros. Nenhuma a mais, nenhuma a menos.
Em conseqüência, um movimento de ódio, insuflado pela extrema-direita espanhola, ocupou a internet, com insultos chulos contra o povo brasileiro. Voltaram aos estereótipos: todo jovem brasileiro que chega a Madri é um travesti; toda jovem, uma prostituta. Travestis e prostitutas existem em todas as sociedades, e se essas pessoas mudam de país é porque encontram em seu destino mercado para as suas atividades. E há mais: as organizações internacionais humanitárias denunciam essa mobilização como tráfico internacional da escravidão branca. Moças e rapazes são seduzidos com falsos contratos de trabalho, ou sob enganosas promessas de casamento, para serem submetidos ao cárcere privado, em prostíbulos.
Em princípio, qualquer estado soberano tem o direito de fechar suas fronteiras a qualquer estrangeiro, negando-lhe a entrada, sem explicar sua atitude. Mas é da boa norma, nas relações internacionais, que trate com dignidade o recusado, favorecendo seu contato com as autoridades consulares de seu país, se as houver, e de prestar-lhe a assistência recomendada nas circunstâncias, como alimentá-lo e dar-lhe alojamento decente, enquanto durar a custódia. Não era o que ocorria aos brasileiros em Madri.
Temos sido muito complacentes – em nome dos interesses dos negócios do turismo – com os estrangeiros. Em certo momento, e já no governo Lula, o ministro do Turismo, Walfrido Mares Guia, propôs que revogássemos, unilateralmente, a exigência de vistos de turismo para os cidadãos norte-americanos. Felizmente, prevaleceu, na ocasião, o bom senso e a ponderação do Itamaraty de que não devíamos fazê-lo. Agora, o mesmo complexo de inferioridade se manifesta. Em programa de televisão, certa senhora de São Paulo, apresentada como analista de não sabemos bem o quê, criticou a posição brasileira. Somos humilhados e ofendidos pelos espanhóis e devemos, conforme essa senhora, tratá-los com o pão, o sal e as flores da velha hospitalidade. Não só devemos oferecer a outra face aos que nos estapeiam, mas, também, beijar as mãos agressoras.
Vamos receber, com o devido respeito, a partir do segundo dia de abril, todos os espanhóis que chegarem às nossas fronteiras, marítimas, aéreas e terrestres, munidos da mesma documentação que nos exigem em seu país, e submetê-los aos mesmos trâmites imigratórios, mas sem nenhum arranhão aos direitos humanos.
O povo de Cervantes e de Picasso, de Goya e de Lorca, é muito maior do que a facção dos Torquemadas e Francos, e merece o nosso respeito. Mas, até mesmo para que dêem valor à nossa acolhida, os espanhóis honrados sabem que devem cumprir as mesmas normas que cumprimos quando visitamos o seu país. Não merece respeito o povo que não respeita os outros povos, nem lhes exige, em troca, o mesmo comportamento.
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