Terra Magazine
Amália Safatle
De São Paulo
Quando pequena, moradora de um bairro próximo ao Rio Pinheiros, em São Paulo, não entendia como era possível que o esgoto e o lixo fossem jogados na água. A ideia de sujar o rio simplesmente não entrava na minha cabeça de criança que começava a descobrir o mundo ao redor; aquilo me soava como uma coisa completamente fora de lógica. Também não entendia como aquela prática não era considerada crime dos mais terríveis - ao contrário, aceita até com certa resignação - e então me deixava levar em divagações que tangenciavam as marginais do rio.
Mais de 30 anos depois, um excelente artigo publicado no jornal The Guardian, de autoria de Jean François-Mouhot, traçou um paralelo entre a escravidão e o uso de recursos fósseis. Em Página22, repercutimos o texto que versa, bem resumidamente, sobre o seguinte: assim como olhamos para o passado e condenamos veementemente a escravidão, as próximas gerações irão nos condenar pelos danos cometidos contra a vida na Terra (pagina22.com.br/index.php/2012/02/sobre-escravidao-e-combustiveis-fosseis). Sabendo que tivemos alternativas e pouco as usamos, as gerações futuras nos julgarão como povos atrasados e, mais que isso, bárbaros.
Se a ética social tem sido na história da civilização mais rigorosa que a ética ambiental, já não é sem hora de unirmos os pontos. Um Espaço Seguro e Justo para a Humanidade, trabalho recentemente publicado pela Oxfam, confederação internacional de 15 ONGs em 90 países, foi nessa linha ao desenhar o mundo como um donut.
No recheio, a base social é formada por 11 dimensões (entre as quais acesso a água, alimento, educação e renda, equidade, voz ativa) - conforme as prioridades dos governos para a Rio+20. E, por fora, os limites são delineados por 9 fronteiras dadas pelo planeta. Esses limites, apresentados por Rockströmet al, são mudança no uso da terra, mudança climática, uso de água doce, ciclos do nitrogênio e do fósforo, acidificação dos oceanos, poluição química, concentração de aerossol atmosférico, destruição da camada de ozônio e perda da biodiversidade.
A "tese" do trabalho é que a erradicação da pobreza, proposta pela Rio+20, não coloca as fronteiras planetárias sob pressão, ao contrário, requer poucos recursos. Isso porque:
- Alimento: fornecer as calorias adicionais necessárias a 13% da população mundial que enfrenta a fome exigiria apenas 1% do atual abastecimento global de alimentos;
- Energia: levar a eletricidade a 19% da população mundial que atualmente não tem acesso a ela poderia ser alcançado com menos de 1% de aumento nas emissões globais de carbono;
- Renda: acabar com a baixa renda de 21% da população global que vive com menos de US$1,25 por dia exigiria apenas 0,2% da renda global.
Mas se o problema não está em erradicar a pobreza, está em reduzir o consumo excessivo de recursos. A maior fonte de pressão da fronteira planetária atualmente vem aproximadamente 10% da população mundial mais Rica:
- Carbono: cerca de 50% das emissões globais são geradas por apenas 11% das pessoas;
- Renda: 57% da renda global encontram-se nas mãos de apenas 10% das pessoas;
- Nitrogênio: 33% do ciclo de nitrogênio do mundo são usados na produção de carne para as pessoas da UE - que representam apenas 7% da população mundial.
Não bastasse a pressão dos consumidores ricos, há uma "classe média" emergente que aspira copiar o estilo de vida insustentável da alta renda. Com isso, até 2030, a demanda global por água deve aumentar em 30% e a demanda por alimentos e energia em 50%, sem contar processos ineficientes e desperdícios que aumentam ainda mais a pressão.
Duas coisas, portanto, ficam bem claras. A primeira é que a justiça social é fundamental para um equilíbrio ambiental: será preciso corrigir as desigualdades socioeconômicas se a agenda ambiental quiser ter sucesso. A segunda é que existe uma grande diferença em atender às demandas sociais e levar o aumento do consumo a níveis irracionais. Como conclui George Monbiot, em artigo sobre esse trabalho da Oxfam, Gandhi já dizia que a Terra provê o suficiente para atender às necessidades de cada um (need), mas não para a sua cobiça (greed).
Uma mostra de que a ética social e a ambiental não estão entrelaçadas, mas sim são uma só, expostas a um só julgamento.
Amália Safatle é jornalista e fundadora da Página 22, revista mensal sobre sustentabilidade, que tem como proposta interligar os fatos econômicos às questões sociais e ambientais.
De São Paulo
Até 2030, demanda global por água deve aumentar em 30%;
por alimentos e energia, em 50% (foto: BBC Brasil)
Quando pequena, moradora de um bairro próximo ao Rio Pinheiros, em São Paulo, não entendia como era possível que o esgoto e o lixo fossem jogados na água. A ideia de sujar o rio simplesmente não entrava na minha cabeça de criança que começava a descobrir o mundo ao redor; aquilo me soava como uma coisa completamente fora de lógica. Também não entendia como aquela prática não era considerada crime dos mais terríveis - ao contrário, aceita até com certa resignação - e então me deixava levar em divagações que tangenciavam as marginais do rio.
Mais de 30 anos depois, um excelente artigo publicado no jornal The Guardian, de autoria de Jean François-Mouhot, traçou um paralelo entre a escravidão e o uso de recursos fósseis. Em Página22, repercutimos o texto que versa, bem resumidamente, sobre o seguinte: assim como olhamos para o passado e condenamos veementemente a escravidão, as próximas gerações irão nos condenar pelos danos cometidos contra a vida na Terra (pagina22.com.br/index.php/2012/02/sobre-escravidao-e-combustiveis-fosseis). Sabendo que tivemos alternativas e pouco as usamos, as gerações futuras nos julgarão como povos atrasados e, mais que isso, bárbaros.
Se a ética social tem sido na história da civilização mais rigorosa que a ética ambiental, já não é sem hora de unirmos os pontos. Um Espaço Seguro e Justo para a Humanidade, trabalho recentemente publicado pela Oxfam, confederação internacional de 15 ONGs em 90 países, foi nessa linha ao desenhar o mundo como um donut.
No recheio, a base social é formada por 11 dimensões (entre as quais acesso a água, alimento, educação e renda, equidade, voz ativa) - conforme as prioridades dos governos para a Rio+20. E, por fora, os limites são delineados por 9 fronteiras dadas pelo planeta. Esses limites, apresentados por Rockströmet al, são mudança no uso da terra, mudança climática, uso de água doce, ciclos do nitrogênio e do fósforo, acidificação dos oceanos, poluição química, concentração de aerossol atmosférico, destruição da camada de ozônio e perda da biodiversidade.
A "tese" do trabalho é que a erradicação da pobreza, proposta pela Rio+20, não coloca as fronteiras planetárias sob pressão, ao contrário, requer poucos recursos. Isso porque:
- Alimento: fornecer as calorias adicionais necessárias a 13% da população mundial que enfrenta a fome exigiria apenas 1% do atual abastecimento global de alimentos;
- Energia: levar a eletricidade a 19% da população mundial que atualmente não tem acesso a ela poderia ser alcançado com menos de 1% de aumento nas emissões globais de carbono;
- Renda: acabar com a baixa renda de 21% da população global que vive com menos de US$1,25 por dia exigiria apenas 0,2% da renda global.
Mas se o problema não está em erradicar a pobreza, está em reduzir o consumo excessivo de recursos. A maior fonte de pressão da fronteira planetária atualmente vem aproximadamente 10% da população mundial mais Rica:
- Carbono: cerca de 50% das emissões globais são geradas por apenas 11% das pessoas;
- Renda: 57% da renda global encontram-se nas mãos de apenas 10% das pessoas;
- Nitrogênio: 33% do ciclo de nitrogênio do mundo são usados na produção de carne para as pessoas da UE - que representam apenas 7% da população mundial.
Não bastasse a pressão dos consumidores ricos, há uma "classe média" emergente que aspira copiar o estilo de vida insustentável da alta renda. Com isso, até 2030, a demanda global por água deve aumentar em 30% e a demanda por alimentos e energia em 50%, sem contar processos ineficientes e desperdícios que aumentam ainda mais a pressão.
Duas coisas, portanto, ficam bem claras. A primeira é que a justiça social é fundamental para um equilíbrio ambiental: será preciso corrigir as desigualdades socioeconômicas se a agenda ambiental quiser ter sucesso. A segunda é que existe uma grande diferença em atender às demandas sociais e levar o aumento do consumo a níveis irracionais. Como conclui George Monbiot, em artigo sobre esse trabalho da Oxfam, Gandhi já dizia que a Terra provê o suficiente para atender às necessidades de cada um (need), mas não para a sua cobiça (greed).
Uma mostra de que a ética social e a ambiental não estão entrelaçadas, mas sim são uma só, expostas a um só julgamento.
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