do OUTRAS PALAVRAS de José Geraldo

Embora ouse pouco, filme de Breno Silveira escapa do banal e surpreende por ótima escolha do elenco e momentos inspirados 

Por José Gerado Couto*, do blog IMS
Se o melodrama é, etimologicamente, drama + música, esse é hoje o território indisputado de Breno Silveira. O êxito de seu primeiro longa, Dois filhos de Francisco (2005), levou-o a insistir no filão dos melodramas que entrelaçam música popular e relação pai-filho. Desse prisma, Gonzaga – De pai pra filho é quase um filme que estava pronto, só esperando para ser feito pelo cineasta.

As acidentadas biografias de Gonzagão e Gonzaguinha, a espinhosa relação entre ambos (que começa na dúvida quanto à paternidade do segundo), isso tudo embalado por uma música de potência e riqueza inesgotáveis, o que mais se pode querer como fórmula do sucesso?

Mas não é bem assim, claro. Uma boa história e uma boa trilha sonora são meio caminho andado, mas há que ter sensibilidade, engenho narrativo e competência artesanal para fazer disso um filme belo, interessante, ou pelo menos digno. E Breno Silveira, a meu ver, saiu-se bastante bem do desafio. Gonzaga é um filme que informa, entretém e comove, e aparentemente suas pretensões se resumem a isso.



O primeiro mérito do cineasta foi o de escapar das armadilhas mais comuns do gênero da cinebiografia, a saber: 1) a hagiografia, ou seja, a tendência a aplainar as arestas do biografado, apresentando-o como isento de falhas e contradições; 2) o desejo de dar conta de todos os fatos relevantes da vida do personagem, o que leva à dispersão, ao acúmulo enfadonho, à perda de foco.

Diante de um universo temático tão amplo e variado, Silveira estruturou sua narrativa em dois eixos seguros: o da já mencionada relação pai-filho, aqui desdobrada em duas (Januário-Gonzaga, Gonzaga-Gonzaguinha), e o do triunfo do artista preto, pobre e iletrado num contexto sócio-cultural adverso.

Vários críticos apontaram, com razão, duas fraquezas do filme, em termos cinematográficos: o uso excessivo da música (não a dos biografados, mas a composta para enfatizar o drama) e a aposta numa mise-en-scène pouco ousada, quando não ancorada nos clichês do cinema publicitário.

Mas os acertos superam amplamente essas deficiências. A escolha e a direção do elenco é um deles. O sanfoneiro Chambinho do Acordeon, que nunca tinha atuado e que foi escolhido entre centenas de candidatos, revelou-se um ator de grande energia e carisma. Ele encarna Luiz Gonzaga na parte central do filme (entre os 25 e os 50 anos). Julio Andrade, como o Gonzaguinha adulto, tem uma atuação magistral, não tanto por mimetizar fisicamente o compositor, mas por transmitir no olhar, com intensidade extrema, ao mesmo tempo a fúria e a fragilidade do personagem.

Alternância dramática

Além da construção sagaz da narrativa, com suas idas e vindas bem articuladas, suas elipses precisas, há momentos inspirados de construção dramática e cênica, como o plano em que Gonzaga e sua primeira mulher, Odaleia (Nanda Costa), cantarolam Légua tirana, uma das canções mais tristes que existem, e ela começa a tossir e a cuspir sangue, no primeiro sinal da tuberculose que a mataria. Ou a cena em que Gonzaguinha surpreende o pai compondo Assum preto e desarma a dureza do velho dizendo “Bonita música”, ao que Gonzaga replica, humilde: “Acha que vai agradar à juventude?”. Ou ainda o plano em que Gonzaguinha, depois de se desentender com o pai em Exu, aparece sentado com o violão à beira de um açude, arriscando as primeiras frases da canção “Sangrando”, que ganha então um novo sentido, o de um recado desesperado ao pai.

Essa alternância de posições, com cada um dos personagens aparecendo ora como o polo forte, ora como o polo fraco da relação, é o que o filme tem de melhor – além da música de Luiz Gonzaga, claro. Não por acaso, nos três momentos citados, há um diálogo fecundo entre a vida dos personagens e sua arte.

A inserção de cenas documentais, feita com destreza e comedimento, causa um grande impacto, sobretudo no final, com o encontro de pai e filho no palco. Tudo bem, o diretor já havia feito isso em Dois filhos de Francisco, mas convenhamos que o estofo da dupla, agora, é infinitamente superior.

Por falar em cenas de arquivo, aqui vai uma preciosidade: Gonzaga pai e filho, os verdadeiros, dialogando e cantando num programa da TV Cultura em 1972, no qual o rei do baião conta de viva voz histórias que estão no filme:

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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.

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