Se o processo de redução da tributação do capital, iniciado por Reagan e Thatcher, continuar, o retorno ao quadro capitalista do século XIX é inevitável.
Branko Milanovic (*)
O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, é um livro monumental que influenciará a análise econômica (e talvez as decisões políticas) nos próximos anos. No modo como foi escrito e pela importância das questões levantadas, trata-se de um livro que autores clássicos da economia escreveriam se vivessem hoje e tivessem acesso ao vasto material empírico que Piketty e seus colegas coletaram.
A mensagem chave de Piketty é tanto simples como, uma vez entendida, quase auto-evidente. Sob o capitalismo, se a taxa de rendimento da riqueza privada (definida por incluir tanto o capital físico como financeiro, terra e moradia) exceder a taxa de crescimento da economia, a distribuição dos rendimentos de capital no produto líquido crescerá. Se quase todo esse crescimento em renda de capital é reinvestido, a razão capital/rendimento aumentará. Isso aumentará a distribuição de renda de capital no produto líquido. O percentual das pessoas que não precisam trabalhar para ganhar a vida (os rentistas) aumentará. A distribuição da renda se tornará ainda mais desigual.
A história combina, elegantemente, teorias do crescimento econômico, distribuição funcional da renda (entre capital e trabalho), e desigualdade de renda entre indivíduos. Ele visa a fornecer nada menos que a descrição de uma economia capitalista.
Através da ação de guerras e de movimentos sociais, o capitalismo parece ter sido “domado”. Piketty argumenta que essa visão mostrou-se errada.
Duas questões podem ser feitas: por que esse modelo não perseverou durante o período da “era de ouro” do capitalismo (entre, aproximadamente, 1945 e 1975?), quando a distribuição funcional da riqueza era estável e a desigualdade de renda declinou? Por que isso importa para o século XXI? A resposta à primeira questão é que o “curto século XX” foi especial. A destruição física associada às duas guerras levou a uma destruição significativa do capital social. Além disso, o advento do estado de bem estar social, motivado pela Grande Depressão e por movimentos socialistas fortes, impuseram uma necessidade de taxar pesadamente o capital. O século XX foi, portanto, diferente do XIX. Através da ação da guerra e dos movimentos sociais, o capitalismo apareceu para a maior parte dos cientistas como tendo sido “domado”. Piketty argumenta que essa visão se mostrou errada. A natureza fundamental do capitalismo não foi alterada – as circunstâncias externas eram diferentes.
Por que o modelo de Piketty anuncia o retorno do “capitalismo patrimonial” (termo que ele introduz para sustentar que parte importante da classe dos super ricos ganha em função da propriedade) no século XXI? As razões são o reverso daquelas que dirigiram o desenvolvimento ao longo do rápido século XX. O período de prosperidade depois do fim da Segunda Guerra Mundial assistiu à reconstrução de grandes fortunas (claro que de propriedade de pessoas diferentes das de hoje); a razão capital/produção nos países avançados regrediu gradualmente a níveis mais altos do que aqueles dos anos pré-guerra. As revoluções Reagan-Thatcher dos anos 1980 reduziram a tributação sobre o capital e sobre a renda elevada, em geral, e depois aumentaram ainda mais a participação do capital no produto líquido. Se esse processo continuar, o retorno ao quadro capitalista do século XIX é inevitável.
O retorno é todo mais provável, na medida em que o crescimento – na fronteira tecnológica em que os países mais ricos operam hoje, em que essa taxa é igual à soma do “puro” progresso tecnológico e ao crescimento populacional – é decrescente. Uma vez que a convergência aos níveis de crescimento da Europa, da Ásia e dos EUA seja alcançado, a taxa de crescimento não pode exceder, digamos, mais que 2,5% ao ano (uma combinação de algo como 1,5% em progresso tecnológico e 1% em crescimento populacional). Piketty escreve: “Crescimento em queda – especialmente o demográfico – é portanto responsável pelo retorno do capital”. Se a taxa de renda da riqueza privada é maior do que 2,5%, então o efeito do capitalismo “pré-domesticado” do século XIX reaparecerá.
Será? Há diferenças significativas entre o século XIX e o nosso, que Piketty não reconhece plenamente, embora as mencione. Em primeiro lugar, não é óbvio que a taxa de retorno sobre a riqueza privada permanecerá alta o suficiente para sustentar a previsão de Piketty. Mesmo se olharmos para a situação admitidamente transitória dos dias que correm, a taxa de retorno está parada em torno de 0%, menos do que a de crescimento das economias mais ricas do mundo. A tendência em direção à diminuição da taxa de retorno, possivelmente mais baixa que a do crescimento, não pode ser descartada.
Em segundo lugar, o papel da renda do trabalho mudou desde o século XIX. Como Piketty reconhece (ele escreve a respeito tanto neste, como em outros trabalhos seus), os rendimentos extraordinariamente altos do trabalho desempenham um papel maior na sociedade hoje do que o faziam no passado, mesmo que incidam apenas sobre 1% a 5% dos mais ricos dos beneficiados com o aumento da renda do trabalho – não o topo, 0,1%, onde “o capital ainda é rei”. Uma dose de “meritocracia” foi introduzida na distribuição. A sobreposição entre ser rico e ter capital, tão evidente no século XIX, será menos proeminente no XXI.
Em terceiro – a convergência da China, e mais ainda da Índia, e mais ainda da África – pode levar um século ou mais para se completar. Enquanto essa convergência ainda está a caminho, o crescimento global será maior do que a taxa de equilíbrio de 2,5%, dado o crescimento mais acelerado da “fronteira infra tecnológica” de países como China, Índia, Nigéria e Indonésia. Este é um dos aspectos do problema que Piketty negligencia. O ex-Terceiro Mundo pode terminar desempenhando o mesmo papel, no século XXI, que a Europa, o Japão, a Coreia do Sul e outros jogaram nos últimos 50 anos – mantendo – mantendo o crescimento global ascendente, enquanto se aproximam dos Estados Unidos.
Esses são alguns dos problemas com as análises de Piketty. Mas se a considerarmos em si mesma, quais os remédios que ela sugere? Uma taxa global sobre o capital – requerida para frear a tendência do capitalismo avançado de gerar uma distribuição distorcida de renda, em favor dos donos da riqueza. A alta taxação do capital, e da herança, em particular, não é algo novo, como Piketty demonstra, amplamente. É tecnicamente exequível, na medida em que a informação compartilhada sobre a propriedade da maior parte dos ativos, do mercado imobiliário ao de ações, esteja disponível. (Piketty, a propósito, fornece muita informação específica a respeito de como isso poderia ser implementado. Ele também dá algumas taxas nominais: nenhum imposto sobre o capital abaixo de 1,4 milhões de dólares, 1% sobre o capital entre 1,4% e 6,8 milhões de dólares e de 2% sobre o capital acima de 6,8 milhões de dólares). Para uma taxa global dessas ser efetiva, no entanto, uma imensa coordenação seria requerida dentre os países centrais – uma tarefa cujos desafios Piketty não desconhece.
A implementação de uma medida dessas por um ou dois países, mesmo das economias mais importantes, levariam a uma fuga de capitais. Os principais paraísos fiscais também teriam de cooperar, embora viessem a perder negócios altamente lucrativos. Mas um acordo na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) sobre uma taxação uniforme da riqueza, embora possa parecer extravagante, hoje, deveria ser posto na mesa, quer dizer, na visão de Piketty, seria a única maneira de “regular o capitalismo” e tornar tanto o capitalismo como a democracia sustentáveis no longo prazo.
No curto prazo, é impossível fazer até mesmo uma justiça parcial à riqueza de informação, dados, análise e discussão contidos neste livro de quase 700 páginas.
Piketty voltou a economia às raízes clássicas em que ela busca as “leis do movimento” do capitalismo. Ele reenfatizou a distinção entre “renda não merecida” e “merecida” que foi jogada há tanto no depósito da terminologia equivocada do “capital humano”, “agentes econômicos” e “fatores de produção”. Trabalho e capital – aqueles que têm de trabalhar para viver e os que vivem da propriedade – pessoas de carne e osso – estão diretamente de volta à economia, neste grande livro.
(*) Branko Milanovic é professor visitante no Graduate Center, da Universidade da Cidade de Nova York, um pesquisador sênior do Luxembourg Income Study Center, e o autor de The Haves and the Have-Nots: A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality. Artigo publicado originalmente em The American Prospect.
Tradução: Louise Antônia León
Créditos da foto: Divulgação
Carta Maior
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