Em editorial contra a Argentina, Globo passa recibo de um estreitamento ideológico que consolida sua desqualificação como mediador do debate que o país precisa.

por: Saul Leblon

Um editorial estampado no jornal O Globo desta semana ( 22/06) esclarece  a aparentemente inexplicável lógica  das pressões e interesses que ameaçam arrastar  a Argentina ao martírio  de um novo default.

Com o título ‘Debacle argentina é lição para o Brasil’, o  texto elucida  a dimensão política do torniquete  que pretende extrair de uma nação  fragilizada um valor  impagável e  indevido.

Há 12 anos,  93% dos credores  argentinos aceitaram uma moratória decretada pelo então presidente Nestor Kirchner (1950/2010).

A renegociação resultou em um desconto da ordem de 70% sobre  uma dívida ao redor de  US$ 130  bilhões,  herdada do ciclo ditatorial e do naufrágio neoliberal conduzido por Menen  & Cavalo, nos anos 90.

Um grupo recalcitrante  se recusou aderir ao pacote .Preferiu vender  seus  créditos,  da ordem de US$ 1,3 bi, equivalente a 1% da dívida total,  a dois fundos e 13 investidores.

Desde então, essa fauna especializada em rapinar as entranhas de economias em dificuldade,  varreu a Argentina com 99 tentativas jurídicas de receber o valor integral dos títulos adquiridos com deságios elevadíssimos.

Seus integrantes se esponjam  na hipótese de transformar carniça em filé-migon.

Outros detentores de 6% de títulos podres, igualmente não renegociados,  aguardam nas redondezas.

De olho no assalto dos abutres pioneiros ,  esperam  o resultado  para  compartilhar do botim.

No último dia 16 , um juiz de Nova York, Thomas Griesa,  deu-lhes  o sinal encorajador.

Griesa acatou o pleito  dos abutres  e determinou que  tinham  o direito de receber a totalidade da dívida de US$ 1,3 bilhão. Mais:  o pagamento  deveria ser simultâneo  ao dos credores que aceitaram o desconto na reestruturação de 2003/2005.

Se a decisão for acatada, o governo argentino terá que desembolsar cerca de US$ 2,2 bi na próxima 2ª feira, dia 30 de junho (cerca de US$ 900 milhões  da parcela reestruturada, mais U$ 1,2 bi da rapina)

Não só.

A matilha dos  6%  avançaria em seguida sobre a carnificina.

Ao requerer isonomia nas cortes internacionais, imporia um saque da ordem de US$ 15 bilhões às reservas do país que se limitam a US$ 28 bilhões.

Ataques especulativos  contra um peso desprovido de lastro viriam na sequência. A capacidade de importação  já limitada  pela ausência de crédito mergulharia  a economia argentina em  uma espiral descendente devastadora.

Os próximos dez dias serão decisivos nesse jogo de vida ou morte entre uma nação e uma matilha.

 Nesta 5ª feira, a Casa Rosada tentou evitar o assalto.

Com cinco dias de antecedência,   depositou  US$ 900 milhões referentes à parcela  da dívida renegociada e blindou reservas em cofres juridicamente invioláveis ( o BIS).

É nesse ambiente de  saque  e  rapina  que deve ser lido o editorial de O Globo, cujo texto  dispara contra Cristina, ao mesmo tempo em que mira um eventual segundo mandato da presidenta Dilma, cercando-o de advertências e insolências.

Trechos:
(...)
‘Esse desfecho começou a ser desenhado pela postura arrogante do marido de Cristina, Néstor Kirchner, quando era presidente, na imposição de condições draconianas na renegociação da dívida, tornada impagável no rompimento da política de câmbio fixo, em dezembro de 2001.(...) Tudo condimentado por um conhecido discurso nacional-populista, marca registrada do peronismo kirchnerista.
O aprofundamento da crise do país — sem divisas em nível tranquilizador, com inflação em 30% e economia em recessão — marca o esperado esgotamento de um modelo heterodoxo intervencionista, de que resultaram a fuga dos investidores e a marginalização da Argentina no mundo. Apesar disso, aplaudido em Brasília.
(...) Embora tudo fosse muito previsível, a diplomacia companheira do lulopetismo, à qual se subordina o Itamaraty, levou a política de comércio externo brasileira a concentrar suas apostas em aliados ideológicos latino-americanos, como a Argentina e a Venezuela, esta colocada para dentro do Mercosul numa manobra da Casa Rosada e do Planalto, de que foi vítima o Paraguai.(...)E, assim, o Mercosul tem hoje dentro dele duas bombas de demolição em contagem regressiva. As consequências já começaram a ser colhidas há algum tempo. Por ser mercado estratégico para as exportações brasileiras — hoje, o terceiro em importância, atrás de China e Estados Unidos —, a Argentina, com sua crise, tem agravado a tendência a déficits externos do Brasil’.

Um impecável exemplar de jornalismo abutre.

O recado dos Marinhos  espelha, ademais, a esperteza  dos que injetam amnésia política na sociedade para  depois vender velhas  fraudes  como floradas  frescas da serra.

O  martírio argentino é um desses casos cuja origem  remete diretamente ao modelo de desenvolvimento ora martelado como alternativa redentora  ‘ao populismo’ do ciclo de governos progressistas  instalados  na América Latina. Entre eles o do PT no Brasil.

Em 2003, quando começou o governo Kirchner, a Argentina era uma espécie de Grécia da América do Sul.

Desacreditada aos olhos de seu próprio povo, balançava como um 'joão bobo' nas mãos do capital especulativo interno e externo.

Nestor Kirchner herdou uma taxa de pobreza produzida pelo extremismo neoliberal –lá mais radical do que o de FHC aqui--  que afetava mais de 40% dos 37 milhões de argentinos.

A dívida da ordem de  US$ 130 bilhões, impagável, corroía todo o seu sistema financeiro.

Fruto mais do desespero do que de uma estratégia, a moratória decretada anteriormente, em 2001, colapsava os mecanismos de crédito e financiamento, sem os quais nenhuma economia funciona.

Os credores sobrevoavam o país à espera do melhor momento para arrancar os seus olhos. E o que lhe restasse de carne ainda.

O assédio  era brutal.

A mídia local , aliada dos interesses plutocráticos nativos e internacionais, interditava o debate de qualquer solução alternativa à rendição incondicional.

Poucos eram os aliados internacionais e entre eles não figurava o ministério da Fazenda brasileiro, dirigido então por Antonio Palocci.

 Para se ter a dimensão do cerco em torno da Casa Rosada, basta conferir o que a liderança do euro, os banqueiros e o FMI fazem hoje com Atenas, Lisboa e Madrid.

A diferença é que Nestor Kirchner não se dobrou.

E isso o jornalismo abutre não perdoa .

Com o  desconto de 70% imposto aos credores, Nestor destinou a receita remanescente a programas sociais e de investimento.

A taxa de pobreza recuou rapidamente.

 A economia argentina foi a que mais cresceu no hemisfério ocidental na  década passada.

As circunstâncias desse braço de ferro são espertamente omitidas agora.

Não é preciso edulcorar  --não se deve edulcorar--  os desafios da luta pelo desenvolvimento.

Com a  indústria  esfarelada nos anos 90 pela ortodoxia da dupla Menem & Cavalo, o renascimento argentino bateu no teto e começou a patinar justamente quando a crise internacional  estreitou a sua margem de manobra pelo canal das exportações .

 A desordem  criada pelo neoliberalismo derrubou os preços das exportações agrícolas  do país, comprometendo adicionalmente um fôlego cambial já restrito pela ‘seca’ de crédito pós-moratória.

 O jornalismo abutre  ataca nessa hora.

E o faz  preventivamente, na esperança de apagar as pegadas de seu próprio passivo.

Inclui-se  aí a safra de desastres colhidos na Grécia, Espanha, Portugal e outros, ora submetidos ao purgante ortodoxo que os argentinos rechaçaram  na moratória de 2003.

É ancorado nessa areia movediça  que o editorial dos Marinhos  ataca Cristina para, ao mesmo tempo, desossar  um provável segundo governo Dilma.

Aqui, de novo, nada a edulcorar.

A economia brasileira vive, de fato,  como tem reiterado Carta Maior, uma transição  de ciclo, cujo passo seguinte exige o amplo debate democrático de alternativas,  custos, ganhos e prazos.

Nem o Brasil, nem a Argentina, porém, constituem  exceções.

Países latino-americanos  tidos como mais amigáveis aos mercados , casos do Peru, Colômbia e Chile, por exemplo,  vivem igualmente um declive de crescimento por conta do ambiente rarefeito criado pela crise  internacional.

 O jornalismo abutre  releva o custo transversal  da desordem instalada  pela agenda que comunga .

E nisso está cercado de ilustres companhias.

No ano passado, por exemplo,  o Brasil cresceu  2,3%  --o dobro da taxa mexicana.

Mas a nota de risco do México foi elevada pela agencia Moody’s, no início de 2014.

E a do Brasil cortada em dois graus.

O que deixou o país abaixo da classificação concedida ao  ‘amigável’ presidente mexicano, Enrique Peña Nieto  --  ‘comprometido com as reformas’, explica o jornalismo comprometido com os interesses que elas ecoam.

Na represália contra a Argentina, o jornalismo  abutre de o Globo passa o recibo de um estreitamento ideológico que consolida  a sua desqualificação como mediador do debate ecumênico que o Brasil precisa fazer para repactuar as bases do seu  desenvolvimento.

A medida dessa marginalidade pode ser aferida por uma fita métrica que desautoriza o veículo dos Marinhos nos seu próprios  termos.

Três dias depois que o editorial do Globo  fermentava sua vingança contra a Argentina,  e  por tabela fuzilava Dilma, o editor do Financial Times e principal analista econômico do jornal, Martin Wolf  --um neoliberal assumido, reconhecido e respeitado--  publicava um artigo em que defendia o direito dos argentinos à moratória e condenava o cerco abutre contra o país.

Compare-se, abaixo, trechos  desse artigo, com o editorial citado , para se ter a medida do grau de beligerância  da guerra midiática  em curso até outubro.

O artigo de Martin Wolf  eleva o jornalismo abutre de o Globo à categoria de ‘mídia urubu-rei’.

Defender a Argentina dos abutres  (FT 25/06)

‘Não muito distante da redação do "Financial Times", em Londres, ficava a prisão Marshalsea, para onde costumavam ser mandados os devedores inadimplentes. No século XVIII, mais da metade dos prisioneiros em Londres eram pessoas encarceradas por dívida não honrada. Em 1869, as penas de prisão por inadimplência foram abolidas e adotadas as leis de falência. Tanto a economia como a sociedade sobreviveram.

As coisas por vezes dão errado. Às vezes, isso deve-se a infortúnios e, outras vezes, a irresponsabilidade. Mas a sociedade necessita uma maneira de permitir que as pessoas possam recomeçar do zero. É por isso que dispomos da opção de declarar falência. Com efeito, nós permitimos que os agentes privados mais importantes em nossas economias - as empresas - desfrutem de responsabilidade limitada. Isso permite que os acionistas sejam blindados das consequências do endividamento de suas empresas.

Também essa ideia foi, quando adotada, acusada de ser uma licença para irresponsabilidade.

Responsabilidade limitada traz problemas, especialmente em empresas extremamente alavancadas (como bancos). A facilidade com que as empresas americanas podem ser blindadas contra seus credores é surpreendente. Melhor isso, porém, do que responsabilidade ilimitada.

Lógica semelhante aplica-se aos países.

Às vezes, seus governos tomam empréstimos em montante superior ao que revelam-se capazes de suportar. Se tomam empréstimos em moeda corrente nacional, podem recorrer a inflação para abater a dívida. Mas, caso endividem-se em moeda estrangeira, essa possibilidade inexiste.

São, geralmente, países com uma história de irresponsabilidade fiscal os que acabam obrigados a tomar empréstimos em moeda estrangeira. A zona do euro colocou seus membros na mesma situação: para cada um dos governos, o euro é praticamente uma moeda estrangeira. Quando os custos do serviço dessas dívidas torna-se muito alto, então uma reestruturação - um calote - torna-se necessário.

Como Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard, mostraram em "This Time is Different" (dessa vez é diferente), essa é uma velha história.

Um mundo onde, para os países e seus credores, a opção seja pagar tudo ou não pagar nada seria tão ruim quanto aquele mundo do século XVIII onde os devedores tinham de escolher entre a fome e a prisão. Um procedimento melhor precisa agora ser encontrado.

Como argumentei, à época, a Argentina viu-se nessa posição na virada do século. Era difícil sentir muita simpatia pelo país, vitimado por má gestão governamental crônica antes de seu calote em dezembro de 2001 e que iria sofrer ainda mais depois disso. Mas havia se tornado impossível honrar o serviço de sua dívida pública de US$ 132 bilhões a um custo tolerável. Além disso, os credores tinham sido recompensados pela possibilidade de um default. Mesmo em seu ponto mais baixo, em setembro de 1997, o diferencial entre os títulos argentinos denominados em dólares e os treasuries americanos estava perto de três pontos percentuais.

Um credor compensado pelo risco de um default não pode ficar surpreso diante de uma situação assim. A solução é diversificar sua carteira de investimentos.

Embora o princípio da reestruturação da dívida soberana faça bastante sentido, na prática é difícil implementá-lo.

Nenhum tribunal pode arrestar e então liquidar a totalidade dos ativos de um país. Esse limbo legal cria dois perigos opostos: o primeiro é ser muito fácil para um país ignorar suas dívidas; o segundo é que isso é muito difícil. A história argentina ilustra os dois perigos: diante de um governo intransigente, os detentores de 93% da dívida não honrada aceitaram trocar seus papéis por dívida com valor nominal enormemente reduzido; mas os que rejeitam essa troca [os intransigentes], impediram uma solução clara. A confusão persistiu durante mais de 12 anos após o calote.

Como primeira vice-diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, em 2002, Anne Krueger ofereceu uma proposta de mecanismo de reestruturação da dívida soberana. Ela argumentou que o processo poderia ser retardado ou bloqueado, se alguns credores intransigentes reivindicassem o pagamento integral.

As ideias de Krueger eram mais supranacionais do que os governos - especialmente o dos EUA - podiam aceitar. Mas foram pelo menos adotadas "cláusulas de ação coletiva". Porém essas cláusulas poderiam não impedir o êxito dos intransigentes que exigem pagamento integral por parte da Argentina, e que têm à frente Paul Singer, da Elliott Management. Como observou recentemente o FMI, essas cláusulas "normalmente só vinculam os detentores de uma mesma emissão [de dívida]". Um credor intransigente pode "neutralizar a implementação dessas cláusulas" se acumularem uma posição de bloqueio, normalmente superior a 25%.

Além disso, acrescenta o FMI, os tribunais americanos interpretaram uma "provisão padrão" constante desses contratos (a denominada cláusula "pari passu") como exigência de que um país devedor realize o pagamento integral de uma dívida não honrada, caso efetue qualquer pagamento de dívida reestruturada.

Não sou advogado, mas, para mim, a ideia de tratamento igualitário significa tratar casos semelhantes da mesma forma. Entretanto, credores que aceitaram uma reestruturação e credores intransigentes não são casos semelhantes. Obrigar os devedores a tratá-los igualmente parece errado. Além disso, é absurdo o argumento segundo o qual os investidores intransigentes estão ajudando os argentinos a punir corrupção governamental. Cabe aos argentinos escolher o governo que desejam. E o pior é que, se a Argentina for obrigada a pagar integralmente os credores intransigentes, quem terá de arcar com isso serão os argentinos. Isso é extorsão apoiada pelo Judiciário americano.

A questão imediata é: como a Argentina poderia encontrar uma solução satisfatória para esses casos? Uma possibilidade é eliminar a cláusula "pari passu". Outra é introduzir cláusulas mais fortes de ação coletiva, especialmente as que cobrem todos os títulos em poder de credores. Outra é deixar de emitir títulos em Nova York. Outra possibilidade seria alterar a lei americana. Outra possibilidade, como observa José Antonio Ocampo, da Universidade Columbia, é reavivar a ideia de um mecanismo global. Essas duas últimas opções parecem muito improváveis.

Mas num mundo de fluxos internacionais de capital, um mecanismo viável para a reestruturação da dívida soberana não é um acessório opcional. É possível que a Argentina seja um caso excepcional. É mais provável que a interpretação da cláusula "pari passu" e a possibilidade de arrestar ativos vá, agora, dificultar a reestruturação de dívidas. Um mundo onde, para os países e seus credores, a opção seja pagar tudo ou não pagar nada seria tão ruim quanto aquele onde os devedores tinham de escolher entre a fome e a prisão. Um procedimento melhor precisa agora ser encontrado’ (FT-25/06).


Carta Maior



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