Helô D'Angelo


Foto da série 'Olhar de um Cipó', que registra as relações entre candomblecistas nos terreiros (Roger Cipó)


“Vai, quebra tudo, porque a senhora é quem é o demônio chefe”. A ordem, proferida por um homem armado, é trecho de um dos vídeos que circulou pelas redes sociais na última semana, nos quais grupos de fiéis evangélicos, aparentemente traficantes, atacam terreiros de Candomblé na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e obrigam uma Ialorixá (mãe de santo) e um Babalorixá (pai de santo) a destruírem seus símbolos sagrados. A região, que abriga mais de 800 terreiros, registrou oito casos de violência semelhantes nos últimos três meses, segundo a Secretaria Estadual de Direitos Humanos do Rio de Janeiro. No domingo (17), cerca de 50 mil pessoas se reuniram em Copacabana, no Rio de Janeiro, para protestar contra a intolerância religiosa.

“O Candomblé está sempre em alerta, desde a origem. Estamos sempre esperando que alguém bata na nossa porta e mande fechar o terreiro”, afirma o fotógrafo e candomblecista Roger Cipó. Ainda que na Constituição conste que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos”, casos de ataques contra religiões não-cristãs seguem crescendo no Brasil: entre 2015 e 2016 as denúncias duplicaram, de acordo com a Secretaria dos Direitos Humanos (SDH).

Nos últimos três meses, só no Rio de Janeiro, 32 denúncias foram recebidas, segundo a Secretaria Estadual de Direitos Humanos do Estado. Em 2016, mais de 70% dos 1.014 casos documentados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa eram contra fiéis de religiões de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé. “É importante destacar que essa violência não é de hoje. Ela é parte do sistema racista que estrutura a nossa sociedade. Não se trata apenas de intolerância, trata-se de racismo. É um extermínio de toda a prática negra das religiões de resistência do Brasil”, acredita Cipó.

Membros do terreiro Asè Iya G’unté levam o tradicional presente à Yemoja, matriarca do candomblé (Roger Cipó)

A professora Carolina Rocha, candomblecista e autora do livro O sabá do sertão – Feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758), concorda, afirmando que polêmicas envolvendo a fé cristã costumam ter mais visibilidade, além de provocar maior comoção social. “Ofensas a crenças cristãs logo tomam proporção nacional, levando a uma mobilização midiática e a uma indignação geral, o que não é o caso quando as religiões violentadas são as de origem africana”.

Exemplos recentes, em sua opinião, são a exposição “Queermuseu” no Santander Cultural de Porto Alegre e a peça de teatro O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, no Sesc Jundiaí, que traziam imagens questionadoras de Cristo, e que acabaram se tornando alvos de protestos e de censuras. “No caso do Candomblé e da Umbanda, a vítima se torna algoz, como em casos de abuso sexual, de homofobia e de racismo. Fica claro, aí, como é um caso de opressão estrutural.”

Origem na resistência


O professor Vagner Gonçalves da Silva, autor de Exu – O guardião da casa do futuro e estudioso das religiões afro-brasileiras, afirma que as origens da violência contra essas crenças estão na escravidão, processo que “sequestrou milhões de pessoas de diferentes etnias africanas, separou famílias e tentou destruir formas de cultura que não fossem brancas e europeias”. “O europeu não teria feito a colonização só por meio de armas. Estado e Igreja eram braços da colonização, e serviam para desumanizar os povos sequestrados, tornando aceitável a sua escravização”, afirma.

Neste contexto, os povos africanos trazidos à força ao Brasil criaram ou adaptaram as religiões que aqui encontraram: enquanto o Candomblé foi criado no Brasil a partir da “importação” de diferentes cultos de origem africana, a Umbanda é uma mistura de elementos das religiões indígenas, africanas e católica. Elas nasceram, portanto, como forma de resistência ao colonialismo e ao catolicismo, que impunha a escravidão como “única forma de salvar a alma dos negros”, segundo o pesquisador. “Eram também espaços de cura, no qual as pessoas desumanizadas, os africanos escravizados, podiam enfim ser humanas. E isso também significava resistir à escravidão”, afirma Roger Cipó.

Noite de kizomba (festa) no Kupapa Unsaba, terreiro do Bate Folha, no Rio de Janeiro (Roger Cipó)

As “novas” religiões foram criminalizadas em um processo semelhante àquele experimentado pelo paganismo na Europa – que vivia então o auge da caça às bruxas. Mesmo após a independência do Brasil, as crenças de matriz africana continuaram a ser marginalizadas: “No Brasil República, em vez de heresia, elas passaram a ser tratadas como expressão de inferioridade racial”, afirma Gonçalves.

Ao longo do século 19, sob as diretrizes do higienismo, a polícia apreendeu imagens de orixás, ferramentas de culto e outros objetos sagrados que até hoje estão em posse do Museu da Polícia Civil. “Mais de um século depois, fiéis e descendentes dos pais de santo da época ainda lutam para tirar essas peças do de lá e levá-las de volta para os terreiros”, diz Carolina Rocha.

A violência seguiu nos anos 1930 durante o governo de Getúlio Vargas, quando, segundo Gonçalves, as crenças afro-brasileiras tomaram proporções de “atraso cultural”. Terreiros foram invadidos e destruídos pelo Estado, batuques de tambores e atabaques foram proibidos e a prática da imolação animal passou a ser encarada como “anti-higiênica e cruel”. Tudo isso enquanto a intelectualidade começava a se interessar por essas religiões e o samba nascia nos mesmos nos mesmos terreiros criminalizados. “Se popularizava, ali, o mito da democracia racial, que até hoje existe e faz com que a opinião pública ache exagero falar em racismo”, acredita Rocha.

Resistência atual


Hoje, a mesma violência persiste. O que muda, segundo Vagner Gonçalves, são os perpetuadores da intolerância. “As religiões de matriz africana foram perseguidas pela inquisição, pelo governo colonial, pelo Estado e, agora, por grupos neopentecostais, que também estão no poder na bancada evangélica”, afirma.

Para o professor, um dos maiores problemas é que o Estado simplesmente não tem preparação para lidar com esse tipo de violência: “Primeiro é preciso tipificar o crime como ofensa religiosa, e em geral as delegacias não estão qualificadas para isso”, afirma. “Se uma mãe de santo vai à delegacia denunciar intolerância religiosa, o delegado pergunta se ela fez macumba para o vizinho, o que fez para merecer aquilo”, diz Carolina Rocha.

Elegun de Iroko, filho do Asè Iya G’unté (Roger Cipó)

Há também projetos de lei que visam pôr fim a práticas comuns nos terreiros, como a imolação animal. O argumento é de que a prática é violenta, desumana e pouco civilizada. “Felizmente todos esses projetos são inconstitucionais, já que a nossa legislação garante a liberdade religiosa”, afirma Gonçalves.

Os pesquisadores enxergam as perseguições às religiões afro-brasileiras, especialmente quando perpetradas pelo próprio Estado, como uma forma de “manter a ordem capitalista”, já que essas crenças, segundo eles, não possuem “estruturas de dominação e de poder”: “Nossos ancestrais africanos não precisavam de um padre; os orixás eram cultuados dentro de casa e os sacerdotes eram os próprios pais de família. Isso não cabe em uma sociedade capitalista que prefere pessoas que abaixem a cabeça e sejam controláveis”, afirma Rocha.

Para eles, uma das formas de combate à violência religiosa é a criação de melhores condições de ensino nas escolas públicas para que se aborde em sala de aula o respeito religioso e os males do racismo. “Os alunos das escolas públicas, em sua maioria, são negros, mas o que se ensina a eles é a história branca e europeia. Eles aprendem mitologia grega, mas não aprendem mitologia iorubá. O que esses deuses têm a dizer a uma molecada negra e periférica?”, questiona a professora.

Marchas e protestos de rua também se fazem fundamentais para dar visibilidade ao assunto. O próximo ato acontece no domingo (24), no vão livre do Masp, em São Paulo. “É importante que as articulações pretas entendam que proteger as religiões de matriz africanas é proteger a sanidade mental das pessoas negras”, afirma Roger Cipó.


Revista Cult

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