Parece inacreditável que a esquerda brasileira e mesmo os democratas de perfil liberal não tenham se dado conta do que Bolsonaro significa e sigam subestimando suas possibilidades eleitorais. O que temos pela frente, caso a ameaça do fascismo seja consagrada nas urnas, é algo cuja simples cogitação deveria produzir uma mudança em toda a perspectiva política.

Marcos Rolim (*)

Bolsonaro declarou essa semana que “presídio superlotado é problema de quem cometeu crime”. A frase, destacada em matérias jornalísticas, recolheu apoio de milhares de pessoas nas redes sociais. Para elas, por certo, a execução penal espelhada no inferno é, no mais, um castigo pequeno para os presos. Se pudessem, essas “pessoas de bem” resolveriam a superlotação prisional com fornos crematórios. A Constituição brasileira, nossas leis e um determinado senso moral, entretanto, impedem a construção de fornos crematórios e o emprego de Zyclon B para exterminar prisioneiros. Foi tentado uma vez, vocês sabem, por um cara muito popular na Alemanha dos anos 40. Então, seria preciso lembrar, primeiro, que os presos, mais cedo ou mais tarde, saem das prisões. Se saem das prisões, isso significa que passa a ser do interesse público saber em que condições saem – se capacitados e dispostos à inserção produtiva na vida social, ou se organizados e especializados no crime; prontos, portanto, para reincidir e para cometer crimes mais graves do que aqueles pelos quais foram condenados.



Dois neurônios conectados, apenas dois, permitem a conclusão de que presídios superlotados não são um problema apenas dos presos, mas um problema nosso, de todos nós, inclusive de Bolsonaro que, como deputado há 28 anos, poderia ter tentado fazer algo para assegurar uma execução penal eficiente.

O segundo fato que Bolsonaro desconsidera é que expressiva parte das pessoas presas será absolvida. A ideia de que todos os presos são culpados revela uma ignorância abissal sobre as dinâmicas da persecução penal no Brasil.

Hoje, quase 40% dos presos aguardam por julgamento. São pessoas a quem não se ofereceu sequer uma sentença de primeira instância. O tempo médio dessas prisões preventivas no Brasil é de 368 dias. No RS, essa média é de 437 dias. A origem social, as faixas etárias e a escolaridade desses presos provisórios não diferem do perfil dos condenados e, também entre eles, as acusações se concentram em ilícitos de drogas (tráfico, indução, instigação ou auxilio no uso de drogas) e crimes patrimoniais (furtos e roubos). A situação é tão vexatória que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem tentado que os Tribunais de Justiça tomem providências para acelerar os julgamentos de réus presos. Em 2017, os Tribunais foram convocados a apresentar seus planos. Tais propostas foram avaliadas pelo CNJ que, considerando a qualidade de cada plano, lhes atribuiu pontuação; o Tribunal de Justiça do RS, a propósito, alcançou nota 5.5, uma das mais baixas (relatório do CNJ disponível em https://goo.gl/dEfAok). Em outras palavras, as condições deploráveis das prisões brasileiras são também experimentadas por inocentes e em margem muito ampla, o que invalida a ideia – em si mesma já absurda – de que tais condições integrariam a retribuição.



Há muitos outros problemas que Bolsonaro desconhece a respeito das prisões. O mais grave deles é que, quando superlotamos os cárceres e degradamos a vida ao ponto de equipará-la às ratazanas, criamos condições ótimas para que as facções criminais se estruturem, proliferem e passem a comandar o crime fora dos presídios. Mais dois neurônios conectados e se perceberá que prisões superlotadas só interessam ao crime organizado. Na verdade, empilhar pessoas em calabouços é uma burrice histórica cuja conta é remetida ao povo brasileiro em forma de violência futura, com mais mortes e mais crimes. Todos aqueles que entendem que a superlotação prisional não é um grave problema de segurança pública, por isso, não sabem o que falam; já aqueles que possuem poder e que insistem nesse caminho são sócios involuntários do crime, membros de uma parceria público-privada perversa.

Parece inacreditável que a esquerda brasileira e mesmo os democratas de perfil liberal não tenham se dado conta do que Bolsonaro significa e sigam subestimando suas possibilidades eleitorais. O que temos pela frente, caso a ameaça do fascismo seja consagrada nas urnas, é algo cuja simples cogitação deveria produzir uma mudança em toda a perspectiva política. Deveríamos estar, há meses, em torno de um projeto político de frente ampla, focado na proposição de reformas estruturais, particularmente aquelas destinadas a criar uma nova instituição política brasileira, vez que a que nos restou é um cadáver insepulto.



É preciso perceber que, quando milhões de pessoas repetem que querem uma “intervenção militar”, o que estão dizendo é que não acreditam mais na institucionalidade política vigente. Que não esperam nada dela, que não confiam nos partidos e em suas lideranças. Trata-se, como bem observou Rosana Pinheiro Machado, de uma disposição anti-sistêmica (https://goo.gl/bvrf49). Por óbvio que tal demanda é uma estultícia, mas quais são os fenômenos e o contexto que a autorizam? Por acaso as pessoas se equivocam quando não confiam na política que temos? Quantos entre nós seguem dispostos a atualizar a “Velhinha de Taubaté” (personagem criada por Veríssimo como a última pessoa que confiava no governo) e que se recusam a ver o mais óbvio, o mais claro, se contentando com slogans e palavras de ordem cuja missão é apenas impedir o pensamento?

É possível imaginar a refundação da política no Brasil de forma a salvar nossa democracia das mãos de um aventureiro com traços de psicopatia, sem um projeto de reformas institucionais que inibam a corrupção e que desmontem os privilégios construídos à margem da República pela irresponsabilidade corporativa? O que a esquerda brasileira tem a dizer sobre isso? É possível disputar a opinião pública sem um programa econômico claro capaz de retomar o desenvolvimento sobre bases sustentáveis, enfrentar o rentismo parasitário, superar a colonização política da máquina pública pela mediocridade e pela delinquência e assegurar condições para a competitividade internacional? Como barrar o crescimento da intolerância e do ódio, agora que eles foram transformados em um projeto de poder, sem apresentar, afinal, propostas de políticas públicas inovadoras e sem uma candidatura de unidade das forças progressistas?

Ao invés disso, o PT, o mais importante partido da esquerda brasileira, atolado em denúncias de corrupção, segue no piloto automático da “mídia golpista” e do “preso político’. Sua militância bate em Ciro e em Marina, identifica nos tucanos seu inimigo fidagal e sua bancada colhe no Congresso assinaturas para uma “CPI das delações premiadas”. Bolsonaro agradece comovido.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

Foto Topo - “Os quatro Cavaleiros do Apocalipse”, de Viktor Vasnetsov (1887). (Reprodução)


Sul 21

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