Em mais um texto, Charles Carmo escreve: “Era do tipo que não dividia simpatias, porque nunca as teve. Fazia da mesquinhez um exercício de fé”


Por Charles Carmo   

Foto: Divulgação
Nos ônibus urbanos, os minutos são indiferentes. O que importa é o número de paradas, sinais fechados e ambulantes. Com eles medimos o tempo da viagem. E alguns medem tudo. Uma infinidade de produtos, sobe, desce, para. Deu graças por estar sentado e olhou tudo quanto podia, a confiar que a paisagem, ora bela, ora suja, encurtasse a viagem.

À janela, sentiu-se privilegiado. Muitos estavam em pé, sacolas, mochilas, bolsas à mão, mas não ele. Através de seus olhos ele podia ver. Desejavam o seu lugar. Suados, invejavam sua posição. Quis o destino que encontrasse aquela vaga e ali, entre a segunda e a terceira marcha, uma brisa batia, dando trégua ao calor. Com certeza eles ambicionavam ficar com o seu lugar. Até mesmo levantou, a fingir consertar a carteira no bolso, somente para ver seus competidores em alerta, prontos a disputar seu assento ventilado, e sentou-se novamente. Sentiu um enorme prazer nisso.

PUBLICIDADE

Era do tipo que não dividia simpatias, porque nunca as teve. Fazia da mesquinhez um exercício de fé, tornando-se devoto dessa mancha em seu caráter. Possuía uma vaidade oca, ancorada nela mesma, não havendo uma qualidade a lhe justificar.



Compartilhava com os demais passageiros a lida diária da locomoção ao trabalho, mas nunca se viu como um igual. Em seu íntimo, acredita ser diferente e a vaga na janela reforçava seu ponto de vista.

Conforme seu destino se aproximava, lamentou o fato de que inexoravelmente outra pessoa sentaria em seu lugar. Calculou o quanto ainda havia de percorrer, abrindo espaço entre os desprivilegiados a ocupar o corredor, antes de descer.



Finalmente, tomou a atitude.

PUBLICIDADE

Ergueu-se lentamente, postergando a entrega de sua posse arejada. Contorceu-se e, aos poucos, chegou junto à porta de saída. Um membro por vez. Ao menos metade dos passageiros desceriam ali, mas novamente ele queria ser o primeiro e, para ocupar a dianteira, pediu licença para passar e conversar com o motorista, o que era mentira. Nada perguntou ao condutor.



A porta abriu.

Deu a passada triunfante quando pisou em falso e caiu de cara no chão.

– PUM!

Percebeu a multidão que presenciava seu corpo estatelado junto ao asfalto e teve a sensação de que sua dignidade saíra correndo, envergonhada.



Alguém zombou e lhe pareceu que uma onda de riso varria a cidade naquele momento. Quis se levantar, mas as chacotas, reais ou deduzidas, não lhe permitiam. Pensou em fingir um desmaio e quem sabe pusesse fim à tara humana que transforma as quedas apoteóticas em espetáculos de comédia, com gargalhadas diretamente proporcionais ao vexame alheio.

Naquele momento sentia o planeta se contrair em risos. Alguém sorriu na China sem desconfiar do motivo. Um polonês gargalhou sozinho e, na Austrália, um vaqueiro esboçou um sorriso no canto da boca. O barulho da queda se espalhava na troposfera. Não que rissem todos, mas era esse seu sentimento. A chacota parecia universal. Sonhou em ser abduzido, levado suspenso para uma outra realidade cósmica em que a vergonha não existisse e a humilhação já estivesse superada.

Da janela do ônibus partiu a derradeira gargalhada. Era a sua janela.

Colheu no chão a vaidade destroçada e desapareceu na multidão. Não se sentia mais um favorecido.  Fora reduzido a uma figura de linguagem. Uma onomatopeia.

Revista Fórum

Comentário(s)

-Os comentários reproduzidos não refletem necessariamente a linha editorial do blog
-São impublicáveis acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência, ou que preconizem violações dos direitos humanos;
-São intoleráveis comentários racistas, xenófobos, sexistas, obscenos, homofóbicos, assim como comentários de tom extremista, violento ou de qualquer forma ofensivo em questões de etnia, nacionalidade, identidade, religião, filiação política ou partidária, clube, idade, género, preferências sexuais, incapacidade ou doença;
-É inaceitável conteúdo comercial, publicitário (Compre Bicicletas ZZZ), partidário ou propagandístico (Vota Partido XXX!);
-Os comentários não podem incluir moradas, endereços de e-mail ou números de telefone;
-Não são permitidos comentários repetidos, quer estes sejam escritos no mesmo artigo ou em artigos diferentes;
-Os comentários devem visar o tema do artigo em que são submetidos. Os comentários “fora de tópico” não serão publicados;

Postagem Anterior Próxima Postagem

ads

ads