Criticar o governo de Daniel Ortega é não só um ato legítimo, como necessário. Mas trazer para o debate o obscurantismo da dicotomia bem versus mal, retirar a Nicarágua do contexto geopolítico e apoiar a queda de um governo legitimamente eleito é um desserviço.

Em seu Discurso de Angostura, Simón Bolívar afirmou que “um povo ignorante é instrumento cego de sua própria destruição”, uma vez que adotam ilusões como realidade, confundem “a traição pelo patriotismo; a vingança pela justiça”. Quase duzentos anos depois, essa análise segue talvez mais atual do que nunca. A enxurrada de informações com que somos bombardeados diariamente tem levado a um fenômeno absolutamente pernicioso: o maniqueísmo analítico.


Nesse sentido, criticar, por exemplo, as políticas genocidas de Israel contra o povo palestino invariavelmente se torna “antissemitismo”; defender o Estado Democrático de Direito contra os ataques em nome da cruzada contra a corrupção se torna coisa de “esquerdista”; toda manifestação de rua, por mais manipulada, violenta que seja, se torna “legítima”. A lista é longa. Não há nuance, não há contexto, não há análise verdadeiramente crítica. A única coisa que decanta é a velha oposição entre bem e mal; se eu estou certo, você está errado e o debate se encerra por aí. E a Nicarágua vem se tornando o mais recente exemplo desse fenômeno.

Ortega é agora o grande bicho-papão da região. Assim como fizeram com Maduro durante os protestos violentos organizados pela oposição em 2017, à direita e à esquerda vemos aflorar “análises”, entre aspas, que endossam a velha fórmula dos “protestos pacíficos sendo violentamente reprimidos pelo governo”. Deixam escapar, talvez inocentemente, os mais de 10 milhões de dólares que tanto a USAID quanto o NED, o, digamos, braço intelectual da CIA, destinaram para “treinar” estudantes na Nicarágua. Esquecem das consequências devastadoras das mudanças forçadas de regime em toda a região – seja as do século passado, seja as que vemos agora no Brasil, Paraguai, Honduras. E esquecem, acima de tudo, a quem essas mudanças interessam.


Veja bem, criticar o governo de Ortega (assim como qualquer outro governo, progressista ou não), não só é um ato legítimo, como também necessário. Agora, trazer para o debate o obscurantismo da dicotomia bem versus mal, retirar o que está acontecendo na Nicarágua do seu devido contexto geopolítico e apoiar a queda de um governo legitimamente eleito pelo voto popular é, para dizer o mínimo, um desserviço, expressão do maniqueísmo analítico que tanto empobrece o debate. E as consequências são aterradoras, como podemos constatar pela nossa própria experiência no Brasil.

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