Complexidade irredutível – A insustentável leveza de uma artimanha
Por Felipe A. P. L. Costa
Veja o caso do chamado Desenho Inteligente (di), um movimento antievolucionista que prosperou entre nós alguns anos atrás [1].
Em primeiro lugar, cabe notar que o di, diferentemente do darwinismo, não é uma escola de pensamento científico, ainda que alguns de seus proponentes sejam eles próprios cientistas. Trata-se, a rigor, de uma vertente pseudocientífica do criacionismo, doutrina segundo a qual tudo-o-que-existe teria sido criado pela intervenção direta de um ente supranatural – comumente identificado com o Deus cristão.
Cabe ainda notar que o rótulo criacionismo não se restringe a uma religião em particular nem caracteriza uma linha de pensamento único e homogêneo. Há divergências. Todas as vertentes, no entanto, tendem a adotar posições fundamentalistas intransigentes, pinçando trechos da Bíblia e os confrontando com o conhecimento científico, sobretudo no caso de teorias ou modelos que lidam com aspectos históricos da natureza – e.g., teoria da grande explosão (big bang), modelo da deriva continental e, claro, a teoria evolutiva.
A origem do problema é o fato de os criacionistas interpretarem toda e qualquer passagem bíblica não como alegorias, mas como narrativas históricas precisas, incluindo as que dizem respeito à origem do Universo, da Terra e dos seres vivos. Na opinião de vários estudiosos (cristãos, inclusive), trata-se de um grave equívoco.
Imunes às críticas, os criacionistas vivem a repetir mantras.
E aí os conflitos se tornam inevitáveis.
Nesse contexto, cabe lembrar o seguinte: embora a ciência seja um empreendimento social, envolvendo a participação de gente espalhada pelo mundo afora, a ocasional hegemonia de um ou outro ponto de vista não é algo que seja decidido pelo voto. Em meio aos entrechoques que caracterizam a arena científica, as ideias que sobressaem ou as que perduram por mais tempo são aquelas que resistem às críticas. Em outras palavras, uma teoria perdura e prospera em virtude das boas explicações que é capaz de oferecer.
Assim, para que um novo ponto de vista tenha espaço na arena científica, passando a ser examinado pelos demais estudiosos, pouco importa a identidade ou o poder político dos seus padrinhos; o que de fato conta é o seu embasamento factual e a sua adequação ao conhecimento científico em geral.
Anticlímax científico
Um nome comumente citado pelos defensores do di é o do bioquímico estadunidense Michael J. Behe (nascido em 1952), um dos gurus do movimento e autor do sucesso de vendas A caixa preta de Darwin (Jorge Zahar, 1997). Foi graças a esse livro que Behe granjeou fama dentro (e fora) do movimento criacionista. A obra, no entanto, foi pronta e duramente criticada pelos seus pares [2].
Aos olhos de Behe, certas máquinas moleculares exibem um padrão de organização do tipo tudo ou nada, de sorte que a remoção de uma única peça emperraria toda a engrenagem, tornando-a disfuncional. Ele fala em complexidade irredutível. Entre os exemplos estariam organelas (e.g., flagelos e cílios) e vias bioquímicas (e.g., a cascata de reações que resulta na coagulação do sangue) [3].
A presença de itens irredutivelmente complexos representaria um desafio definitivo à evolução darwiniana – o desenvolvimento deles não poderia ser explicado como resultado de uma sucessão de etapas, cada uma levemente diferente da anterior, mas todas igualmente benéficas aos seus portadores. A presença de tais itens criaria assim uma lacuna explicativa no conhecimento científico convencional.
Para os criacionistas (incluindo adeptos do di), só haveria um jeito de preencher essa laguna: a intervenção direta de algum ente supranatural. É um ponto de vista questionável, em mais de um sentido. Não vamos discorrer sobre isso, mas não há como negar que opiniões desse tipo, além do anticlímax científico, tendem a incentivar práticas nebulosas e sectárias. E, como o leitor talvez já tenha percebido, o sectarismo inibe o pensamento crítico e, ao mesmo tempo, facilita a proliferação dos mais diversos tipos de fundamentalismo – o religioso, o político etc. [4].
Adaptações complexas
Contestar o conceito de complexidade irredutível não equivale a negar a existência de adaptações complexas. Tema recorrente na história da biologia evolutiva, o próprio Darwin asseverou (1859, p. 189; tradução livre):
Se fosse comprovado que algum órgão complexo existente não poderia ter sido formado por uma sucessão de numerosas e pequenas modificações, a minha teoria ruiria completamente.
Com exceção talvez da terminologia e da natureza dos exemplos utilizados, a tese central do livro de Behe nada tem de novo. Mesmo porque, ao contrário daquilo que muitos dos seus leitores parecem imaginar, o bioquímico estadunidense não foi o primeiro a evocar a questão da complexidade como um tipo de desafio à teoria evolutiva. Em maior ou menor extensão, tais desafios vêm sendo lançados desde meados do século 19.
A respeito do olho, por exemplo, eis o que Darwin escreveu em Sobre a origem das espécies (1859, p. 186; tradução livre):
Supor que o olho, com todos os seus inimitáveis dispositivos para ajustar o foco a diferentes distâncias, para aceitar diferentes quantidades de luz e para corrigir aberrações esféricas e cromá–ticas, poderia ter sido criado por meio de seleção natural, confes–so francamente, parece ser o maior dos absurdos. Todavia, a razão me diz que, caso se possa mostrar que existem numerosas gradações, desde um olho perfeito e complexo até outro muito imperfeito e simples, cada um sendo útil ao seu portador; e, além disso, caso qualquer variação ou modificação no órgão seja sempre útil a um animal, sob condições de vida mutáveis, então a dificuldade de acreditar que um olho perfeito e complexo pudesse ser formado por seleção natural, ainda que insuperável em nossa imaginação, dificilmente seria considerada real.
Estruturas e processos tidos como complexos já se converteram eles próprios em objetos de estudo e pesquisa, incluindo o olho humano. Os resultados têm detalhado e esclarecido o nosso entendimento a respeito do processo evolutivo.
Assim, vários daqueles itens tidos como irredutivelmente complexos têm sido desconstruídos – i.e., ao serem investigadas, em vez de irredutíveis, tais estruturas e processos têm se revelado perfeitamente redutíveis.
Ora, essas desconstruções contrariam os termos principais da tese de Behe, a qual nos diz que a remoção de uma única peça tornaria toda a engrenagem disfuncional. A divulgação de resultados negativos, no entanto, não parece ter surtido qualquer efeito. Behe – um “bioquímico cego”, nas palavras do biólogo inglês Thomas Cavalier-Smith (nascido em 1942) – continua a repetir hoje a mesma ladainha de quando divulgou o seu ponto de vista pela primeira vez.
É uma postura sectária, incompatível com a boa prática científica. Rejeitando as evidências, ele deixa os criacionistas – e o público leitor em geral – com a falsa impressão de que as teses contidas em A caixa preta de Darwin ainda estariam de pé, desafiando a teoria evolutiva. E elas não estão – a rigor, nunca estiveram.
De resto, não custa lembrar: no âmbito científico, quando uma hipótese não se ajusta às ‘vozes do mundo’, ela deve ser corrigida; isto não sendo possível, como às vezes não o é, ela deve ser substituída por alguma alternativa viável. Tampar os olhos e virar as costas para o mundo não irá nos levar a lugar algum.
*
Notas
Este artigo é o nono de uma série de excertos extraídos e adaptados do livro O que é darwinismo (2019) – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.
[1] O uso do adjetivo inteligente já é uma artimanha; o termo mais apropriado a se aplicar aqui seria outro – displicente, inerte etc.
[2] Seu livro mais recente, Darwin devolves: The new science about DNA that challenges evolution (HarperOne), foi lançado em fevereiro de 2019.
[3] Há quem defenda a inclusão do criacionismo no currículo escolar, alegando que isso daria uma alternativa aos alunos. É uma artimanha, agora combinada a uma falácia: o criacionismo não é uma teoria científica.
[4] Não são poucos os fundamentalistas religiosos que alardeiam coisas do tipo “A ciência turva o espírito e nos afasta de Deus”. A mensagem que fórmulas assim transmitem ao cidadão comum não poderia soar mais alienante. De resto, é um ponto de vista medonho, ainda mais daninho que o seu contraponto: “Sei como o mundo funciona, por isso eu me basto”. Nas palavras de Michael Robbins: “Um dos piores aspectos do evangelicalismo conservador, especialmente em suas orlas fundamentalistas, é que muitas vezes o seu literalismo incentiva o ateísmo néscio da variedade [Richard] Dawkins” – v. artigo ‘You are here’, publicado na revista eletrônica Slate, em 6/1/2014 (versão em português, ‘As guerras entre fundamentalismo e modernidade’, foi publicada neste Jornal GGN, em 29/4/2018, e pode ser lida aqui).
GGN


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