Edson Teles


Uma criança torturada pelo regime militar. Na época, Edson Teles tinha 4 anos e a irmã Janaína, 5. Hoje pesquisador no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, instituto que identifica corpos de desaparecidos políticos, Teles veio a Paris responder a pergunta: há democracia no Brasil?

Sua família levou a Justiça a reconhecer o coronel Brilhante Ustra como torturador pela primeira vez. E como é ver o seu torturador e o de seus pais virar um herói de governo? Nesta entrevista ao DCM, o professor de Filosofia da Unifesp relata suas lembranças daquela época, o medo vivido hoje pela família e a perspectiva de ter seus pais considerados pelo presidente como terroristas.

O que você lembra da sua experiência com a ditadura militar, sobretudo quando criança?

Minha primeira experiência foi a prisão. Eu nem sabia que era ditadura. Sou filho de militantes políticos, que na época militavam no PCdoB, Partido Comunista do Brasil. Eles faziam o apoio logístico do pessoal que estava na Guerrilha do Araguaia. Era o momento em que a ditadura estava em cima dessas resistências, via luta armada. Então, eles passaram a ser alvos.

Uma guerrilheira da região do Araguaia tinha saído de lá e vindo para São Paulo. Era justamente a minha tia, que estava hospedada na minha casa. Prende uma pessoa aqui, uma pessoa fala uma coisa ali. Uma das pessoas que foram presas entregou meu pai, minha mãe. Eles foram presos no dia 28 de dezembro de 1972. No dia 29, de manhã, a polícia foi à nossa casa.

Nós estávamos com a Crimeia [Alice Schmidt de Almeida, militante e ex-guerrilheira no Araguaia], que era quem eles realmente procuravam. A versão da família é que ela era uma empregada da casa. Era uma vida semiclandestina. Você tinha os documentos, mas também escondia um pouco. Eu tinha 4 anos de idade, então lembro muito pouco. A família foi levada para o DOI-CODI.

Em São Paulo?

Na Rua Tutoia. Chegando lá, a gente viu eles sendo torturados, já torturados. Na sala de tortura, estavam todos ensanguentados.

Essa é a imagem que você lembra?

Essa é a imagem que eu lembro. Na verdade a primeira imagem que eu lembro é a minha mãe me chamando, mesmo eu não reconhecendo a fisionomia dela, de tão machucada que ela estava, mas vendo que a voz era dela.

Era uma tortura para ela, que sabia que você estava ali…

É. Os militares falavam que iam matar nós dois, eu e minha irmã. Minha irmã tinha 5 anos. Eles usavam disso para eles falarem. Eles estavam atrás da pessoa da Guerrilha do Araguaia, que estava ali presa também, só que eles não sabiam.
E como você se sentiu naquele momento?
A versão é de que ali era um hospital, é o que contaram pra mim. A gente ficava ali durante o dia. Uma parte do tempo, a gente ficava no estacionamento do DOI-CODI brincando, não fazendo nada o dia inteiro. E à noite, nós éramos levados para uma casa, uma instituição militar. A gente dormia num colchãozinho no chão. Então, ficávamos muito desamparados, sem os meus pais, com quem eu tinha vivido toda minha vida, quatro anos. Às vezes, eu os via, todos detonados.

Lembrava um hospital?

Eu não tinha essa reflexão. Um pouco, parecia sim. Eram salas, corredores. Pessoas uniformizadas, de branco. Mas eu tinha apenas 4 anos. Colou. Pessoas machucadas. Tinha grito. Repartição pública. Se eu fosse mais velho, diria que não. As pessoas andavam armadas. Na época passou por um hospital.

Foi uma tortura para sua mãe, mas foi também uma tortura para você.

Certamente.

E como você reage quando uma parte da sociedade brasileira chama os seus pais de terroristas?

É terrível, né? Eu acho que o mais grave é o governo chamar, chamá-los de terroristas. E terem como herói, no caso do Bolsonaro, o Ustra. Foi ele que comandou, ele que me recebeu pessoalmente. Ele que torturou pessoalmente os meus pais. Isso que eu acho mais grave. A população geral não ter muita ideia disso, eu até entendo, porque o Brasil, nos 30 anos de democracia, não foi atras dessa história. Não procurou rever esse passado de violência. Ao contrário, essa violência foi só crescendo.

Agora, você ter no governo alguém que faz o elogio da ditadura, considera quem resistiu à ditadura terrorista, que tem um torturador como herói, é muito preocupante, dá medo. Aonde estamos indo?

Como você, membro de uma família que conseguiu fazer a justiça reconhecer Ustra como culpado de torturas na ditadura militar, vê as homenagens sistemáticas de Bolsonaro desde o voto no impeachment até hoje no governo?

No primeiro momento, foi descrer um pouco, no golpe contra Dilma. Num primeiro momento, é falar: é uma voz isolada ou de um grupo de extrema direita, não vai ter tanta repercussão. Mas quando veio a campanha eleitoral, que ele disparou na frente, toda aquela história da facada que o levou mais pra frente. Quando se teve a vitória, aí é mais assustador porque você fica na dúvida.

Claro e perceptível é que, por ele, estaria com uma ditadura clássica hoje, mesmo que já estejam acontecendo processos ditatoriais no Brasil hoje. Já estaria com uma ditadura aberta. Então você fica sempre com receio na medida em que foi o único torturador da ditadura condenado, no processo da família Teles. Então, a gente fica com muito cuidado, com medidas de segurança o tempo inteiro. São pessoas violentas, ideologia violenta. Discurso autoritário.
Vocês consideram sair do Brasil?

Não. Não entrou em pauta. Claro que há ofertas, pessoas que falam: “por que vocês não saem do Brasil?” Mas não entrou na pauta da família, na crença de que formas de resistência vão bloquear esse processo de violência política.

Como é ver esse tipo de força governar hoje o país?

Por incrível que pareça, eu acho que não é uma novidade. Mesmo porque a ditadura, como contexto histórico, é muito recente. Você tem a geração que estava viva na ditadura e sabe qual é a força dos militares, a forma de ação da polícia cotidiana, conheceu aquelas estruturas autoritárias de ontem tem essa memória muito viva. Por outro lado, nesse tempo de democracia, as polícias ficaram mais violentas, tortura-se talvez mais. A gente sabe que em qualquer delegacia, hospital psiquiátrico, unidade para adolescente se tortura. Primeira coisa é isso: não é uma novidade. Acontecendo de novo isso se tornou uma política de governo.

Já havia uma política de Estado violenta, que não foi desmontada da ditadura para a democracia. Ela permaneceu. Mas havia proposições, programas de governo que eram contra, que seguravam essa violência. Tentavam segurar. Esse governo tem como programa soltar essa violência, produzi-la e sofisticá-la. Primeira coisa é isso. Não é uma grande novidade. Mas é uma forte intensificação de um modelo de Estado violento.

E qual a sua visão sobre a tentativa de Jair de Bolsonaro de reescrever a história?

É a única salvação dele, conseguir ligar um suposto caso de corrupção da esquerda com a história de que havia no passado do país terroristas e esses terroristas eram de esquerda. A grande chance discursivamente dele, de efetivar a manutenção da sua potência social, é construir esse discurso como narrativa nacional.

E aí ele precisa desmontar todo o discurso da Comissão da Verdade e outros processos de memória para criar uma narrativa nacional contrária. Porque se há algo que se construiu nesses 30 anos é de que a gente teve uma ditadura violenta. Só que a gente não chegou aos detalhes, o que é uma pena que pessoas como Bolsonaro tivesse espaço político. Mas não é fácil para ele desmontar. É uma disputa discursiva atual.

Há uma política para a educação no governo Bolsonaro?

Sim. Ele tem uma política para a educação, uma política elitista. Acho que é um no grave nesse momento que a gente está vivendo porque nos últimos 15 anos a gente teve uma grande expansão universitária, de vagas. Falo do ensino universitário que é onde eu trabalho.
A criação de cotas étnico-raciais, da escola pública, as cotas de um modo geral povoaram a universidade de segmentos que ali nunca estiveram, nem mesmo nas gerações anteriores. E o contato com essas pessoas, que tinham saberes específicos, de sobrevivência, de estar no cotidiano muito difícil de luta, com o saber acadêmico, acho que potencializou formas de ações política, de movimentos que não tinha antes; coletivos negros, coletivos negros-feministas, coletivos feministas, questões de gênero… O encontro desses segmentos que nunca estiveram na universidade com a universidade potencializou. Então a gente não pode no Brasil num lugar público, numa esfera pública, escapar da questão racial.

Você vê lá a Globo se preocupando em ter a questão racial minimamente tratada nas suas novelas, jornais. Então, acho que o grande foco no ensino superior é destruir a grande inclusão que houve nos últimos anos. E no restante do ensino, é potencializar as grandes corporações, cada dia tomando posse do material didático. O governo incentivando as escolas militares, ou seja, transformar a escola num lugar de disciplinarização e veiculação dessa narrativa que ele quer construir sobre o que ele diz ser o Brasil.

É uma política de educação ditatorial?

Sim. A gente não tem mais ditadura como foi nos anos 1970, aquela coisa do tanque na rua, porque o tanque já estava antes e continuou. E vai aumentar. É uma política ditatorial porque visa colocar o Estado a serviço do fascismo, quer criar um núcleo central de visão do que seja o Brasil, do que é ser brasileiro, mas eu diria também com aspectos locais muito potentes. Fundamenta muito uma matriz brasileira que é a do racismo.

Todo o combate dele à questão de gênero ou a invisibilização de uma política de Estado da questão racial fundamenta em grande medida essa forma autoritária. Não é simplesmente uma ditadura, mas é uma ditadura que traz esses elementos muito fortes.

Eu nunca vi, no que eu estudei do século XX pra cá, um governo tão assumidamente racista e patriarcalista. Nem na ditadura se fazia tanto discurso. Não que não fosse.

Do que faz parte dizer que não há racismo no Brasil?

Tem esse lado. Mas a gente vê, por exemplo, o vice-presidente declarando que a mãe solteira é fábrica de desajustados. Esse é um tipo de discurso patriarcal e regressista, que vai além de dizer que não há racismo. Que não há racismo, é o que a democracia tentou fazer com essas políticas de inclusão, que hoje é uma política de produção do inimigo. O “inimigo” é preto, pobre, declaradamente.

Quando você pega o pacote anti-crime do Moro, o policial que matar sob forte emoção está anistiado. Quando você tem um governador do Rio, o Witzel, que comemora a morte de um jovem ou sobe de helicóptero pra dar tiro na favela. Isso produz a ideia de que há uma vida descartável.
E qual o efeito de um tal governo sobre as mentes da sociedade brasileira?
É difícil de prever. Eu acho que vai ser duradouro, se ele seguir. E parece indicar que vai. Ele não é uma novidade. Ele é o velho requentado e potencializado por formas bem contemporâneas. Você vê, por exemplo, na Folha de S. Paulo, que 80% dos robôs de whatsapp, das redes sociais, da campanha dele ainda estão em ação.

Não é um governo que visa usa usar só as velhas estruturas do Estado. Ele está usando as tecnologias de comunicação altamente atualizadas para entrar na subjetividade de cada indivíduo brasileiro e fazer com que essa operação de construção de uma determinada narrativa perdure. Isso vai depender muito das formas de resistência.




Eduardo Bolsonaro


De que forma você avalia as ofensas que o presidente e seus filhos dirigem aos filhos de vítimas da ditadura, no Brasil e fora dele?

Uma extrema falta de respeito e a produção de uma outra violência contra essas famílias. Eu tenho um tio que é desaparecido político. O Estado vai lá, mata e desaparece com o corpo dele. Passam 30 anos de democracia, ninguém localiza. As forças armadas nunca disseram onde colocaram o corpo dele. Vem um presidente e fala que seu tio é terrorista, contra a democracia. Diz até mais, que, no caso do Fernando Santa Cruz foram os próprios companheiros que mataram. Muda completamente a história.

É muito desrespeitoso com essas famílias e se junta ao que a gente estava falando antes: é muito estratégico da parte dele de que a ditadura enquanto estado foi branda, mas que combatiam pessoas perigosas. É grave porque esses parentes, na medida em que a memória não foi bem elaborada. Um presidente falar isso traz tudo de volta. É muito grave para o país também. Faz parte da construção dessa narrativa conservadora.

E as ofensas ao físico e à idade da primeira dama francesa?

Nossa, um desrespeito que obviamente está ligado a esse lugar patriarcal, machista, a consideração de que há um ser superior que é o homem e um ser inferior, que é a mulher. Além de ser uma coisa altamente ultrapassada, serve para uma política local, de que o estrangeiro está se intrometendo em questões de soberania nacional. Ele faz isso através de um velho preconceito na sociedade brasileira, que é o machismo. Eu vejo aquela estupidez, que faz parte da formação dele, como ele se dirige individualmente aos problemas que ele trata, mas também uma estratégia política; fazer o uso desse preconceito faz parte da sociedade brasileira para fazer política interna.

O que é o governo Bolsonaro?

É um governo ultraconservador, ditatorial, fascista, autoritário, ainda que o Estado não o seja ainda, ultraliberal, neoliberal radical. Ele entra lá pra cumprir uma pauta econômica: acabar com a universidade pública, privatizar as empresas, especialmente as estratégicas, a Petrobras, destruir o Estado, acabar com a saúde pública, que é uma das maiores conquistas da nossa democracia. Ele cortou mais de 5 bilhões em investimento em vacina, para descartar essas vidas. É essa ideologia neoliberal que ele quer implantar no cotidiano das pessoas.
A sociedade brasileira está consciente?

A sociedade é uma coisa complexa. Eu diria que pouca gente está consciente. Os que estão conscientes não sabem muito o que fazer porque, de certa forma, gente foi pego de surpresa. Até o momento em que ele venceu a eleição, as pessoas ainda acreditavam naquele modelo de política criado na redemocratização, de que o ganha sempre a eleição é o consenso, a tendência ao centro. Essa última eleição mostrou que o quadro brasileiro mudou.

O que ganhou foi uma tendência à extrema direita, o ultraconservadorismo. Eu acho que a sociedade tem começado a se conscientizar. Mas há um fantasma que a ultradireita, junto com a direita, soube criar e a ultradireita soube usar muito bem, que é o fantasma do PT-esquerda e o corrupção. Eles souberam criar esse fantasma. Então isso ainda alimenta uma boa parte da sociedade brasileira a aceitarem um mal “X” em detrimento de um mal maior. É uma tese que ele usa muito bem.

Então a cada momento que o Lula tem uma chance de estar livre, ele mobiliza um setor da classe média para ir pra cima, porque tem medo da volta do PT ao governo. Ele liga PT, corrupção, crise econômica recente, violência urbana. As possibilidades de debate são cada vez mais precárias. Censura ao cinema, censura aos jornais, manipulação da opinião pública.

O Brasil é uma democracia?

Eu acho que não. Especialmente se for perguntar nas periferias das grandes cidades. É mais fácil falar que é uma ditadura. Eu acho que tem alguns elementos dessa democracia que nós criamos nos últimos 30 anos. Elementos institucionais que ainda têm algum funcionamento. Isso pode causar algum problema para o governo. 65 mil pessoas morrendo violentamente, na maioria pretos.

Ou seja, há um recorte racial nessa matança. Não dá pra dizer que temos uma democracia no Brasil. Ou a coisa mais amena. O filme “Marighella” não pode passar. Tem que censurar essa história porque ele quer contar o inverso. Então são formas de agir que não respeitam a Constituição de 1988.

Não se pode afirmar que é uma democracia se a própria ordem democrática criada em 1988 não é respeitada. Isso é visível no processo do Lula e a Vaza Jato que colocou aquilo tudo por terra. Até agora ninguém cancelou o processo porque o que interessa politicamente é que ele se mantenha preso. Eu acredito que esses elementos fazem do país uma não-democracia. Isso não quer dizer que já seja uma ditadura.

O judiciário no Brasil funciona?

Eu acho que o judiciário no Brasil é como esse aspecto geral da sociedade. Ele é racista e outras coisas mais. Ele funciona se você não for de esquerda ou algum movimento social.
Hoje tem mais de 10 pessoas presas em São Paulo por estarem em ocupações de moradia popular. Não tem nenhuma acusação consistente. Isso é uma prisão política. E eles estão lá presos há mais de 60 dias. O judiciário é que mantém essas prisões, que dá a prisão preventiva, que renova essa prisão.

O próprio STF, ainda que em alguns aspectos vote de forma interessante, principalmente em relação aos costumes, a questão da homofobia, algumas questões raciais, as cotas, mas a gente sabe que todo o processo do golpe e da manutenção do golpe hoje passou por ali. É um sistema viciado.

Da ditadura para a democracia, foi um dos lugares menos tocados. Nenhum juiz que assinava as tragédias que as pessoas passavam nas prisões políticas nos anos 1960 foi retirado nos anos 1980. Nenhum. Eles permaneceram. Eu diria que é um sistema judiciário muito precário.

Você fala de democracia a um público em Paris. Qual é a reação internacional face ao que acontece no Brasil?

Primeiro é uma reação forte que não é uma reação forte de “engrossar” uma resistência. A reação mais forte que estou vendo é a da estupefação: “o que é isto que está lá?”; “como é que vocês têm 15 anos de governo de esquerda e de repente tem uma coisa dessa, como Bolsonaro?”. Então a primeira coisa que eu vejo chegando aqui no exterior é a extrema incompreensão. Também vejo as pessoas querendo formar redes de apoio. Querendo ouvir, dar espaço para a fala de denúncia do governo. Para nós, no Brasil, é fundamental que isso tenha repercussão, sair dos controles.


DCM

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