por Eliara Santana*

A propaganda como estratégia comunicativa – e não apenas como mero anúncio – camufla e faz circular um discurso político sob forma de notícia pelos meios de comunicação.

Estrategicamente, a narrativa visa produzir um consenso, que é construído sob um sistema de propaganda que se estrutura no combate do herói contra os inimigos da Nação de bem.

Todos simbolicamente e estrategicamente construídos, ao longo de várias edições informativas. A representação desse processo, com a evidenciação dos atores, foi o que se revelou nas últimas edições do JN.

Nesse processo metafórico de “combate”, há dois inimigos eleitos: o da vez (que precisa ser afastado para não atrapalhar) e o “grande inimigo”, mais antigo, aquele causador de todo o mal, que deve ser para sempre eliminado.

O inimigo da vez será desconstruído. Sobre ele pesam muitas questões que impedem o triunfo dos cidadãos de bem, a vitória do grande herói. Mas ele não precisa ser eliminado totalmente, posto que foi útil ( e uma vez que sabe que os cidadãos de bem fazem coisas que não são muito legais…).

Mas o grande inimigo precisará ser destruído…

Segundo Michel Pêcheux, a natureza humana é constituída de pulsões (lógica, econômica, afetiva), e o processo objetivo dessas pulsões pode ser controlado e instrumentalizado pela propaganda como estratégia comunicativa. Vou apresentar as edições como atos de uma peça, pois creio que outros momentos virão.

1º ato: O herói volta à cena

No dia 9 de dezembro, no esteio das pesquisas de sondagem eleitoral divulgadas (primeiro pela Veja e, depois, pela Folha de São Paulo), a edição do JN trouxe de volta à cena o herói do combate à grande corrupção, personificado pelo outrora juiz, agora ministro, Sergio Moro.

JN não se referiu às pesquisas na edição, tampouco estabeleceu qualquer ligação com a disputa eleitoral já instaurada. Só mostrou as “notícias”, só trouxe as “informações”.

E essas pretensas informações neutras cuidaram de mostrar que o herói ilibado do combate à corrupção está bem vivo, pronto para o combate.

Já na chamada, a ação de autoridade é demarcada: o ministro da Justiça é quem autoriza o envio de tropas para conter a matança de índios no Norte do país.

Na grade da edição, a primeira matéria traz os dados da ONU sobre IDH e a desigualdade brasileira. Exploração padrão, com dados numéricos bem colocados, mas nenhuma cena de miséria.

Há um breve nota explicando que os dados mostrados não se refere ao atual governo, e a fala ponderada e bem articulada de uma representante do ministério da Cidadania. O presidente não aparece.

Na sequência, o tema que precisa ser inserido para que o herói apareça: a corrupção.

Matéria de seis minutos mostra eventos em Brasília para celebrar o Dia Internacional de Combate à Corrupção (não há menção específica à data, quando foi criada, se há celebrações em outras partes do mundo.).

O narrador informa que o ministro do Supremo, Luís Fux, representando a Justiça, diz que o país “precisa de instituições fortes e de uma imprensa investigativa”. E que o ministro da Justiça “voltou a defender a prisão após condenação em segunda instância”.

Corte para as imagens da sessão solene na Câmara, em que o primeiro plano mostra a imagem séria e compenetrada do ex-juiz e atual ministro, que recebeu uma medalha e “falou dos avanços e também dos retrocessos no combate à corrupção.

Citou a decisão do Supremo Tribunal Federal, que mudou entendimentos sobre a prisão após condenação em segunda instância.

No Congresso, tramitam duas propostas que tratam do tema”. Entra então a fala do ministro, com uma imagem em primeiro plano, mostrando-o com o semblante sério e sisudo, simulando preocupação:

“Alguns reveses contra (sic) a corrupção, que não vieram do governo, não vieram do governo, alguns reveses da (sic), contra a corrupção que nós temos que trabalhar. Nós temos que olhar o futuro, e pra esse futuro é realmente imprescindível a volta da execução da condenação em segunda instância, por emenda constitucional, por projeto de Lei, essa decisão aí realmente cabe ao Congresso Nacional e aos parlamentares”.


Ele é a voz que tem autoridade para antecipar o futuro e dizer as únicas bases possíveis para esse futuro delineado.

Ele é também a voz que se autoriza a direcionar a ação do outro poder – o Legislativo – para que esse futuro aconteça.

Ele é a voz que se autoriza a sugerir uma emenda constitucional em relação a uma causa pétrea da Constituição.

Nesse cenário, as denúncias trazidas desde junho pelo The Intercept, que mostram relações nada republicanas entre o atual juiz e vários procuradores, parecem fazer parte do cenário de outro planeta.

Na sequência da matéria, o ministro Fux, do Supremo, “defendeu o endurecimento das leis e a prisão após a condenação em segunda instância apesar da decisão do Supremo. Fux afirmou que o juiz pode mandar prender um condenado se considerar necessário, mesmo que haja possibilidade de recurso”. Ou seja, de antemão ja se considera que um ACUSADO é CONDENADO, e o juiz é o senhor da razão para dizer se haverá ou não condenação.

Afirma Fux:

“Se o juiz, avaliando a prática dos crimes do réu, sabendo que nessa seara dos delitos de corrupção, lavagem de dinheiro, peculato a possibilidade de destruição de provas é imensa, o juiz pode perfeitamente impor que o réu NÃO recorra em liberdade. E os tribunais podem reafirmar isso. Claro que os tribunais dependem de uma provocação do Ministério Público para que não haja uma reformatio in pejus, mas eles devem fazer isso, ao invés de ficarem opinando para tirarem a tornozeleira e liberar as prisões, porque não é essa a maneira de se manter esse patamar que nós alcançamos no combate à corrupção. Pelo contrário, isso passa uma ideia absolutamente nefasta em relação ao nosso país, nós vimos isso recentemente”.

A narração retorna trazendo o discurso indireto de Fux para trazer à cena outro aparelho institucional e legitimar sua atuação: “O ministro Luis Fux também defendeu o papel da imprensa no combate à corrupção, especialmente o jornalismo investigativo”.

Entra novamente a fala taxativa do ministro:

“Quanto mais imprensa, menos corrupção. A imprensa investigativa. Essa imprensa que noticia a rotinização de escândalos. Porque ali há um alto poder de dissuasão, porque as pessoas não gostam de aparecer. Elas até podem praticar os ilícitos, roubar, mas não querem que ninguém saiba. E a imprensa, ela descortina esses homens que querem combinar honra com dinheiro fácil”.

Ele categoriza, portanto, qual imprensa está autorizada a investigar e a dizer sobre os já definidos “corruptos” – a imprensa que faz espetáculo a partir dos escândalos.

Vale lembrar que nos áudios divulgados pelo The Intercept, Fux é nomeado a partir da célebre frase dita por Moro: “In Fux We trust”. Pelo visto, a confiança permanece.

O narrador informa novamente que o ministro Sérgio Moro também falou no evento no Ministério da Justiça (entra imagem), “e afirmou que a corrupção atinge a confiança da população no agente público. O ministro também comentou a aprovação do pacote anticrime e disse que vai continuar trabalhando para restabelecer a possibilidade de prisão após uma condenação em segunda instância”.

Entra a fala do ministro:

“Respeitamos a decisão do Supremo Tribunal Federal, o Supremo Tribunal Federal é uma instituição fundamental para a democracia, mas nós discordamos desse precedente. Nós entendemos que a execução em segunda instância é fundamental para que o sistema de justiça funcione, para que nós possamos reduzir a impunidade. E com a redução da impunidade, nós só não (sic) possamos realizar justiça nessa geração, e não em geração seguintes, mas igualmente reduzir o número de crimes aumentando o risco para quem comete esses delitos. Então, não é só a corrupção, é também para toda espécie de crime”.

A fala do ministro não só afronta a decisão do STF como diz que a justiça só funciona se seguir seus preceitos. Portanto, ele se instaura como o sujeito capaz de reduzir a impunidade – e apenas ele (impunidade circunscrita a determinados quadros, evidente, pois outros atores não serão incomodados).

A matéria sobre a corrupção prossegue com fala do PGR, Augusto Aras, e o arremate do repórter ((Vladimir Neto, cuja esposa foi assessora do ministério da justiça) dizendo que a retirada de quadros de procuradores das investigações pode enfraquecer a Lava Jato.

Imediatamente na sequência, outra matéria cita pesquisa Datafolha que informa que o ministro Sergio Moro é o mais bem avaliado do governo, e “o apoio popular dele é maior do que o do presidente. O ministro é conhecido por 93% dos entrevistados”. Entra quadro com dados da pesquisa mostrando a avaliação do ministro.


Não creio que avaliações individuais de ministros no quadro de um governo seja algo usualmente passível de grande destaque na grade de um noticiário.

Após o quadro positivo, nova matéria mostra que “o ministro Sérgio Moro autorizou o envio da Força Nacional de Segurança para o Centro-Sul do Maranhão, onde dois índios foram assassinados no fim de semana”.

Na sequência, a exibição da portaria e nova citação ao ato do ministro, que vai garantir a segurança dos povos indígenas e dos funcionários da Funai.

Ao todo, as matérias com viés positivo para Moro tiveram 9 minutos na edição, além da chamada principal no começo do jornal.

Entre menções, imagens com discurso reportado e fala direta, Moro teve para si, em exposição no primeiro bloco do JN, 3 minutos e 7 segundos. É um bom tempo de exposição para um ministro de governo sem que um fato excepcional tenha ocorrido.

O herói foi colocado em cena novamente, pronto para o combate. Na imagem simbolicamente construída, ele é aquele capaz de “fazer a coisa certa sempre”.



2º ato: Desconstrução do indesejado e ataque ao inimigo

A edição do dia 10 deu continuidade à trama.

Mesmo pulverizada, continuou a focar no repertório corrupção e trouxe à cena os dois outros atores, Bolsonaro e Lula.

O presidente, pelo conjunto da obra tosca, continua a ser o bode na sala, aquele que pode colocar em risco os planos da elite.

Por isso, é preciso neutralizá-lo, desconstruí-lo para minar seu poder junto às massas (que ainda se mantém relativamente estável, como mostraram as pesquisas).

E Lula é o inimigo número 1, aquele que teima em ressurgir do sertão, da prisão, do silenciamento.

Não há nada que dê conta de acabar totalmente com seu apelo sedutor junto à população – ainda mais agora, que está apaixonado… portanto, precisa ser atacado, por todos os lados.

Ontem, naquele timing perfeito da Lava Jato-JN, a força-tarefa pediu a prisão do filho de Lula, Fábio Luís, na operação Mapa da Mina.

Investigação que corre desde 2016, sem novidades, tanto que a juíza Gabriela Hardt avaliou como desnecessária a prisão dos acusados. Vamos às cenas.

Desconstrução de Bolsonaro

A edição focou em questões muito incômodas para Bolsonaro – como meio ambiente, cultura, política externa, grilagem de terras etc. -, mostrando, sem falar, sua incompetência na gestão e sua total falta de postura para o cargo.

Começou pelo “atrito” com a jovem ativista Greta Thunberg, que foi chamada de “pirralha’ pelo presidente.

A fala grotesca de Bolsonaro foi exibida em primeiro plano, bem como a postura crítica e debochada de Greta, que se autodenominou “pirralha” no Twitter.

Foi a terceira matéria do bloco, com dois minutos, e explorou bastante a importância da ação da jovem ativista.

Logo na sequência, matéria mostra levantamento da Anvisa sobre agrotóxicos presentes em vários alimentos, detectando “uso de agrotóxico inapropriado ou acima do limite legal” – é um assunto espinhoso, posto que todos sabem que o governo liberou geral o uso de agrotóxico.

Na oitava matéria da edição, repercussão sobre relatório do IBGE que mostra as desigualdades do acesso à cultura, com 3 minutos.

A matéria destacou a importância dos bens culturais, da pluralidade e do investimento em cultura numa questão que vem sendo bastante atacada pelo governo Bolsonaro, com vários cortes e censura, sendo que os maiores prejudicados são as populações de baixa renda.

A matéria 11 mostrou críticas de especialistas à proposta do governo de autodeclaração para regularizar propriedades rurais: “Segundo especialistas, o texto deixa brecha para a grilagem”.

Na saída do Palácio, um presidente titubeante parece voltar atrás na proposta de autodeclaração, “até fez piada”, como informa a matéria: “Mais tarde, na assinatura da medida provisória, a palavra autodeclaração não foi foi usada, mas a proposta é semelhante. O suposto proprietário é quem vai declarar que tem a posse da terra”.

Para fechar, a palavra contundente da ambientalista Brenda Brito: “A mensagem que o governo passa basicamente é: ‘continuem ocupando terra pública que depois a lei vai ser flexibilizada e vai beneficiar quem está ocupando essa área’. Então, o que está sendo feito na prática é uma grande anistia a um crime que é invadir terra pública. é um crime que é previsto desde 1966”. Outro especialista ouvido diz que a proposta “premia os infratores”.

Resumindo: o governo Bolsonaro facilita a grilagem.

Ataque ao inimigo de sempre

Depois do silenciamento pós-saída da prisão, Lula retorna ao JN sempre enquadrado pelo velho repertório corrupção.

Esse é o único formato em que cabe uma abordagem ao ex-presidente. Nada mais interessa.

Dessa vez, pra começar a esquentar os tambores, o foco foi a 69ª fase da Operação Lava Jato, que traz de volta à cena investigação sobre a empresa Gamecorp, do filho de Lula.

Estrategicamente, a matéria na grade vem depois de matéria sobre o HC concedido a Pezão e antecede matéria sobre a CCJ do Senado que aprova prisão após condenação em segunda instância.

Pois bem, a matéria sobre a investigação tem 4 minutos, e na abertura já se insinua a grande corrupção, observem o casamento do texto com as imagens:

“A Operação Lava Jato teve hoje uma nova fase…”



“…e o alvo eram empresas de um dos filhos…”



“…do ex-presidente Lula”. O cano explode com um montão de dinheiro na menção ao nome de Lula



As cenas são as costumeiras, dos agentes e carros da Operação Lava Jato chegando para cumprir a lei, enquanto o repórter narra o balanco das investigações. Quando são citados os envolvidos, a imagem:



Ela aprece somente quando é mencionado o nome de Fábio Luís Lula da Silva.

Os outros envolvidos não são mostrados (apenas um, rapidamente).

E o nome de Fábio é novamente citado: “A maior parte do dinheiro foi para a Gamecorp, de Fábio Luís”, com a imagem abaixo:



A matéria afirma, pela fala dos procuradores, que parte do dinheiro foi usada para comprar o Sítio de Atibaia.

E então aparece a informação: “O ex-presidente Lula já foi condenado em segunda instância sobre reformas e decoração no sítio de Atibaia, mas Lula não é investigado na operação de hoje”.

Apesar disso, a imagem:



E a matéria prossegue tentando mostrar os elos que ligam Lula à investigação, como um decreto assinado pelo então presidente que permitiu que a Oi comprasse a Brasil Telecom. Asserções trazidas como verdades irrefutáveis.

Na exposição das imagens, apenas a menção a Fábio Luís recebe o toque do cano por onde escorre dinheiro da corrupção…

Essas duas edições do JN revelam o jogo estratégico que pode estar sendo desenhado, com o uso da velha fórmula de propaganda: um enredo de combate que mistura o herói ilibado e os inimigos a serem destruídos.

Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

P.S: As edições do JN têm trazido à cena os “problemas do Brasil”.

Bem ao estilo do quadro “O Brasil que queremos”, estão mostrando os grandes problemas que nos afligem, como falta de saneamento, saúde precária, falta de acesso à cultura. Pode ser uma deixa para algum herói (Moro ou Huck, ou ambos) apresentar soluções.

*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.


Viomundo

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