Decisão acende debate sobre vínculo trabalhista na economia de aplicativos
Juíza de São Paulo não reconheceu vínculo empregatício entre entregadores e o iFood
Reprodução/iFood
Com o crescimento tímido da economia e o alto índice de desemprego, empresas como o iFood, Rappi, Uber e 99 se tornaram a principal fonte de renda de milhares de trabalhadores. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE divulgada em dezembro do ano passado, o número de brasileiros que trabalha em veículos como os entregadores, motoristas de aplicativo, taxistas e motoristas e trocadores de ônibus, aumentou 29,2% em 2018 e chegou a 3,6 milhões.
Por seu impacto social, o debate em torno do vínculo empregatício entre os usuários e essas plataformas é dos mais acalorados do Direito Trabalhista. Ao analisar o caso, a juíza da da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo julgou que os requisitos para caracterização de vínculo empregatício entre o iFood e os entregadores da plataforma eram inexistentes.
A magistrada destacou "as peculiaridades da forma de organização do trabalho que, de fato, é inovadora e somente possível por intermédio da tecnologia" e considerou os entregadores possuíam o "meio de produção". Isto, por si, já inviabilizaria o vínculo entre empregado e empregador no entendimento da juíza.
"Se possuir mais de um veículo, ou explorar o veículo colocando outra pessoa para trabalhar, estará mais próximo da figura de empregador", ponderou a magistrada. Ela ainda destacou que "restou demonstrado que o trabalhador se coloca a disposição para trabalhar no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai fazer, uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos desejar".
A fundamentação dividiu opiniões dos especialistas em Direito do Trabalho. Para Flavio Sirangelo, ex-presidente do TRT-RS e atual sócio do escritório Souto Correa, a sentença foi acertada.
"Essa modalidade de trabalho pertence ao mundo de hoje, é diferente e não se enquadra no padrão rígido do contrato de emprego da CLT. O mundo evolui e assim também acontece com o direito. Certíssima a juíza ao citar o filósofo Heráclito — "Nada é permanente, exceto a mudança"", destaca Sirangelo.
Outra entusiasta do entendimento da juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar é a advogada trabalhista Cristina Buchignani. 'Os entregadores não possuem subordinação jurídica à empresa. Evidente que existem regras, mas nada funciona se não for assim. Todas as relações humanas possuem regras, expressas ou não, mas não são necessariamente juridicamente subordinadas", pontua.
Divergência
O entendimento da juíza paulista, no entanto, não é unanimidade. A própria Justiça do Trabalho de São Paulo apresenta jurisprudência distinta sobre o assunto. Em dezembro de 2019, a juíza Lávia Lacerda Menendez, da 8ª Vara do Trabalho de São Paulo, julgou que existia, sim, vínculo empregatício entre os entregadores da Loggi e a empresa.
A decisão de dezembro foi provocada por ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho e, além de determinar o reconhecimento de vínculo, também multou a empresa em R$ 30 milhões. No entendimento da juíza, ao contratar entregadores autônomos, a companhia "tirou direitos sociais mínimos" dos trabalhadores. A decisão foi suspensa no último dia 20 de dezembro pelo desembargador Sergio Pinto Martins, plantonista do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2).
Um dos críticos dessa modalidade de trabalho é o advogado Livio Enescu. "Em que pese a fundamentação e o entendimento da juíza, estão presentes na relação entre entregadores essas plataformas os requisitos que ensejam a relação de emprego. Para mim, esta relação é a mesma que a empresas de fretes. Apesar de o Ministério Público do Trabalho não ter êxito nesse processo, ele poderá recorrer para o TRT-2, ou para as outras instâncias se essa decisão for mantida", comenta.
Enescu acredita que essa questão deverá ser cada vez mais debatida e faz parte do "modelo precarizante do ‘moderno’ capitalismo mundial". "A concorrência das plataformas com as empresas formais é destrutiva e absolutamente desleal. Ter os meios de produção nos dias de hoje não pode definir quem é empresário ou empregado. Que o debate aumente e que possamos denunciar mais essa precarização no mercado", define.
Para Ricardo Calcini, professor de Direito do Trabalho, a ação civil pública não era o meio correto para a garantia de um possível direito ao vínculo empregatício. "Seria necessário analisar, especificadamente, cada um dos motoboys para verificar a existência do seu efetivo direito ao vínculo de emprego, o que é absolutamente inviável na via coletiva".
Para ele, é imprescindível a produção de provas que mostrem, de maneira inequívoca, "quais motoboys existentes na empresa teriam, de fato, direito ao liame empregatício, bem como o montante que devido a cada um deles. Necessário se apurar, ainda, a forma de prestação de serviços de cada trabalhador, dias efetivamente trabalhados, jornada e os valores salariais recebidos".
"A via coletiva somente será apta quando for igualmente ou mais eficaz do que tutela individual, o que não se verifica no caso dos motoboys da IFood", finaliza.
Debate global
A questão em torno do tema é tão global quanto a economia dos aplicativos. Em janeiro deste ano entrou em vigor uma lei na California — berço das startups de tecnologia — que torna ilegal a economia informal (gig economy – ou economia do bico) no estado. A lei foi pensada, inicialmente, para regularizar a situação dos motoristas de aplicativo (Uber, Lyft, etc.). Contudo, acabou abarcando atividades de trabalhadores que atuam historicamente como freelancers, como jornalistas, escritores, fotógrafos, consultores, advogados, artistas e dançarinos. Tanto lá como aqui, o debate jurídico imposto pela economia dos aplicativos parece longe de acabar.
Clique aqui para ler a decisão.
1000100-78.2019.5.02.0037
1001058-88.2018.5.02.0008
Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.
ConJur

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