Esperar que se desenvolva a imunidade de grupo ao Covid-19 no Reino Unido ao deixar o vírus “atravessar a comunidade” não é uma boa estratégia de saúde pública, defende neste artigo o professor de Virologia Jeremy Rossman.


O primeiro ministro britânico Boris Johnson, acompanhado pelos conselheiros de Saúde, Chris Witty, e Ciência, Patrick Vallance. Foto Pippa Fowles / UK Gov

O governo britânico promulgou a sua segunda fase da resposta à pandemia do Covid-19: retardamento. Segundo o jornalista da ITV Robert Preston, a estratégia do governo para minimizar o impacto do Covid-19 “é permitir que o vírus atravesse a população inteira de forma a adquirimos imunidade de grupo, mas a uma velocidade muito retardada, de forma a que os que sofram os sintomas mais graves sejam capazes de receber o apoio médico de que precisem, e de forma a que os serviços de saúde não sejam congestionados e assolados pela enorme quantidade de casos que tenham de tratar ao mesmo tempo”. Dito assim parece uma estratégia sensata. Mas o que é ao certo a imunidade de grupo e como pode ser usada para combater o Covid-19?

Os nossos corpos combatem as doenças infecciosas através da ação do seu sistema imunitário. Quando recuperamos, mantemos muitas vezes uma memória imunológica da doença, que nos permite combatê-la no futuro. É assim que funcionam as vacinas, ao criarem esta memória imunológica sem necessidade de adoecermos.

Quando temos uma doença nova, como o Covid-19, em que não temos uma vacina e nunca ninguém foi infetado por ela, a doença vai propagar-se por entre a população. Mas se um número suficiente de pessoas desenvolve aquela memória imunitária, então a doença deixará de se propagar, mesmo que parte da população não esteja imune a ela. Isto é a imunidade de grupo e é uma forma muito eficaz de proteger o conjunto da população contra uma doença infecciosa.

Mas a imunidade de grupo é geralmente vista como uma estratégia preventiva dos programas de vacinação. Se não temos uma vacina - como é o caso do Covid-19 - conseguir essa imunidade implicaria ter uma parte significativa da população a ser infetada e a recuperar do Covid-19. Mas o que é que isso significa no caso da propagação da doença no Reino Unido?

A percentagem necessária da população com imunidade para que se desenvolva a imunidade de grupo depende do quão contagiosa é a doença. Isto é medido pelo termo R0, que indica quantas novas infeções são provocadas por cada caso. Para o Covid-19, estima-se que o R0 seja de 3.28, embora este número deva mudar porque os estudos ainda estão a decorrer. Isso quer dizer que para haver imunidade de grupo, cerca de 70% da população do Reino Unido teria de ser imune ao Covid-19.

Atingir a imunidade de grupo pressuporia que o número de pessoas infetadas no Reino Unido estivesse acima dos 47 milhões. As previsões atuais indicam que o Covid-19 tem uma taxa de letalidade de 2.3% e uma taxa de doença grave de 19%. Quer dizer que conseguir a imunidade de grupo ao Covid-19 no Reino Unido podia resultar na morte de mais de um milhão de pessoas, com outros oito milhões gravemente infetados e a precisarem de cuidados intensivos.



O retardamento como estratégia de saúde pública


Contudo, não é evidente o quanto deste debate sobre imunidade de grupo - alegadamente proposto por David Halpern, diretor executivo do Behavioural Insights Team, e depois comentado no blogue por Robert Peston - é efetivamente a política do governo.

Além disso, esta abordagem não passa por simplesmente deixar a doença espalhar-se livremente por entre a população, mas sim abrandar a sua disseminação e proteger os que são mais vulneráveis a doenças graves.

Abrandar a disseminação do Covid-19 é uma estratégia promissora, em especial quando combinada com medidas reforçadas para proteger idosos e os que têm problemas de saúde. Ao abrandar a disseminação da doença, o sistema público de saúde pode ter mais tempo para se preparar, podemos ser capazes de desenvolver tratamentos ou vacinas e estaremos mais próximos do verão, altura em que há menor incidência de outras doenças que sobrecarregam o NHS, como a gripe.

Uma estratégia de retardamento, quando combinada com a vigilância e o confinamento, tal como recomenda a Organização Mundial de Saúde, pode ser muito eficaz no combate à propagação do Covid-19. No entanto, se abrandarmos a disseminação do vírus confiando na imunidade de grupo para proteger as pessoas mais vulneráveis, continuaremos a precisar que ele infete 47 milhões de pessoas.

Mesmo que consigamos proteger os mais vulneráveis (embora não se conheça nenhuma discussão sobre como isto será feito ou por quanto tempo), a taxa de letalidade para a fatia da população que fora isso é saudável ainda pode ultrapassar os 0.5%. Isto quer dizer, mesmo neste improvável melhor cenário, que estaremos a falar de mais de 236 mil mortes.

Podemos e devemos fazer melhor que isso. A China está a controlar rapidamente o contágio de Covid-19 sem recorrer à imunidade de grupo (apenas 0.0056% da sua população foi infetada). Esperar que se desenvolva a imunidade de grupo ao Covid-19 no Reino Unido ao deixar o vírus “atravessar a comunidade” não é uma boa estratégia de saúde pública.

Jeremy Rossman é professor honorário de Virologia na Universidade de Kent e presidente da ONG Research-Aid Networks.

Artigo publicado no portal The Conversation no dia 13 de março de 2020 e traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

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