“É um fenômeno de fake news na ciência”, conclui Rafaela Pacheco, médica de família e comunidade, sanitarista, professora de medicina da UFPE Caruaru e presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade.
do Marco Zero Conteúdo
Médicos com patrocínio político e planos de saúde promovem uso da cloroquina
por Raíssa EbrahimAs ações políticas e do mercado de saúde estão alinhadas com o anúncio desta quarta-feira (13) do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ele disse que vai discutir com o ministro da Saúde, Nelson Teich, a ampliação do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.
Mesmo ciente de que não há eficácia comprovada, Bolsonaro defende que o uso da medicação tem que ser pensado de forma emergencial e alega que existem médicos no Brasil e no exterior com o entendimento de que a utilização é adequada sobretudo se feita precocemente e em pacientes do grupo de risco.
O anúncio de Bolsonaro, que também aproveitou para falar da necessidade de alinhamento com os ministros, acontece um dia depois de Teich ter feito alertas sobre o uso da cloroquina em sua conta no Twitter.
No início desta semana, um dos maiores estudos já feitos com hidroxicloroquina no combate à Covid-19 apontou que a droga não diminui a mortalidade, seja usada com ou sem associação à azitromicina. O estudo foi feito com 1.438 pessoas hospitalizadas em 25 hospitais da região metropolitana de Nova York e publicado no importante periódico médico Journal of the American Medical Association (Jama).
Na semana passada, o The New England Journal of Medicine, outra publicação médica respeitada mundialmente, mostrou, após estudo com 1.376 pacientes, também em Nova York, que não houve evidências de queda no número de mortes e intubações após o uso da medicação.
No fim de abril, o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (National Institute of Allergy and Infectious Diseases – Niaid), dos Estados Unidos, publicou que contraindicava o uso da hidroxicloroquina com azitromicina no combate ao coronavírus por conta do potencial de toxicidade.
A Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE) confirmou, nesta quarta (13), mais 592 novos casos da Covid-19 – 232 se enquadram como Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) e 360 são casos leves. Agora, Pernambuco totaliza 14.901 casos já confirmados, sendo 7.876 graves e 7.025 leves. Também foram confirmados laboratorialmente mais 67 óbitos, totalizando 1.224 mortes no estado.
Médicos defendem uso precoce da cloroquina
O grupo Doutores da Verdade atendeu cerca de 100 pessoas na noite da última segunda-feira (11) na Igreja Evangélica Ministério Labareda, no bairro de Casa Amarela, Zona Norte da capital, e está avaliando qual será a próxima comunidade atendida. A ideia é percorrer vários locais pobres com a ação.Segundo o pneumologista e alergologista, com mestrado em medicina pela UFPE, Antônio Aguiar, cerca de 15 pacientes tiveram, na ocasião, após consulta e avaliação médica, a indicação do uso da cloroquina e levaram a medicação para casa mediante assinatura de um termo de consentimento e atestando que conhecem os riscos dos efeitos colaterais.
“Não podemos banalizar o uso, a maioria não irá precisar de tratamento”, disse ele em conversa com a Marco Zero Conteúdo por telefone nesta quarta (13). “A impressão que a imprensa passou é que todo mundo que tem coronavírus vai morrer. Tenho atendido muita gente com estresse, depressão e ansiedade achando que é uma pena de morte”, afirmou.
De acordo com Antônio, “existem muitas evidências apontando a eficácia (do remédio) em revistas sérias internacionais, mostrando que, quando usado precocemente, a gente diminui os números de internamento, a necessidade de UTI e os casos de óbitos”.
Porém, o médico não citou as fontes da informação quando questionado, detalhando, no entanto, que já há metanálise mostrando a eficácia do remédio, quando se reúnem vários trabalhos já publicados.
No início da epidemia no Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por não haver tratamento para o novo coronavírus, autorizou que médicos prescrevessem a hidroxicloroquina, inclusive ambulatorialmente, desde que haja um consentimento do paciente de que é um tratamento experimental ou se for para fins de estudo científico.
Nesta terça (12) à noite, em live no Instagram com a deputada Clarissa Tércio (PSC), Antônio Aguiar, que disse saber que tem o apoio do Cremepe (Conselho Regional de Medicina de Pernambuco), declarou: “Não estou fazendo nada ilegal. Podem denunciar ao Cremepe. Estou apenas curando pacientes e, se não curar, estou diminuindo o sofrimento”.
Em nota enviada à reportagem, o Cremepe informou que “instaurou expediente de apuração das informações referentes ao programa ‘Doutores da verdade’. O expediente corre em sigilo processual para não comprometer a investigação. Os expedientes são regidos pelo Código de Processo Ético – Profissional (CPEP) estabelecidos pela Resolução CFM Nº 2.145/2016”.
Clarissa Tércio prega o isolamento vertical
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| Clarissa Tércio (PSC) ao lado do marido, o pastor Júnior, em ação dos ” Doutores da Verdade” |
Sempre alinhada às falas do presidente, a deputada Clarissa Tércio, financiadora de atos pró-Bolsonaro no Recife, defende o isolamento vertical, em que somente os grupos de risco, a exemplo de idosos e pessoas com comorbidades, precisam ficar isolados em casa.
“Vocês não devem se assustar com as más notícias propagadas pela grande mídia”São essas as ideias que a deputada propaga também em seus canais de comunicação e na Rádio Ministério Novas de Paz, líder de audiência na Região Metropolitana do Recife e que pertence à Assembleia de Deus de mesmo nome, presidida pelo seu pai, o pastor Francisco Tércio. Seu marido, o pastor Júnior, também pertence à igreja, que possui mais de 20 mil fiéis.
“Acho absurdo estar colocando o tempo todo fotos de covas e pessoas morrendo. Estamos atravessando um momento difícil, mas vai passar”
“Eu estou aí há um tempo, acho até que peguei esse negócio porque é o tempo todo entrando em UTI, em hospital e agora nessas ações”
“Em momento nenhum negamos a doença, sempre defendemos o isolamento vertical e o cuidado das pessoas que são grupo de risco. Elas, sim, expostas à doença é muito perigoso”
Isto é, ele é disponibilizado para uso, “a critério médico, como terapia adjuvante no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados, sem que outras medidas de suporte sejam preteridas em seu favor”.
A Marco Zero Conteúdo perguntou à SES-PE quantas unidades foram enviadas por Brasília: “O governo federal enviou duas remessas dessa medicação para Pernambuco, que foram encaminhadas às unidades hospitalares, totalizando 184 mil comprimidos. Além disso, a SES-PE adquiriu 86.200 comprimidos de hidroxicloroquina para atender pacientes da Covid-19, além de doentes com outras patologias que fazem uso do medicamento, por meio da Farmácia de Pernambuco, como lúpus e artrite reumatóide”, respondeu a secretaria em nota.
Clarissa disse ontem na live, com pico de audiência de quase 800 pessoas simultaneamente, que acredita que “existe uma militância contra a droga”. “Pode denunciar na Polícia Federal, FBI, Interpol, o que for. Não somos criminosos, não estamos fazendo nada errado”, provocou.
E aproveitou para alfinetar o Psol, partido opositor e para quem ela perdeu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), presidida pelo mandato coletivo das Juntas: “Do Psol não podemos esperar aplausos. É bem provável que, se eu tivesse distribuindo maconha e pílula abortiva, eu estaria sendo aplaudida”.
A promotora Ivana Botelho, do MPPE, informou à Marco Zero Conteúdo que o órgão decidiu distribuir a “notícia de fato” sobre o grupo “Doutores da Verdade” e vai iniciar uma investigação com o objetivo de verificar se há dano à saúde pública. O MPPE também oficiou o Cremepe para saber que providências o órgão tomou em relação ao fato.
Lives X artigos científicos
“Infelizmente estamos vivendo um momento em que lives são mais importante que artigos científicos”. A declaração é do médico clínico geral Pedro Alves, há mais de dois meses na linha de frente do combate à Covid-19 na enfermaria do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), referência em infectologia.Pedro também problematiza a a possibilidade de comprovação da eficácia da cloroquina a partir das ações de promoção do remédio: “Com um presidente que acha que é uma gripezinha, você vai lançar mão de uma droga que não tem efetividade comprovada num tratamento em massa para um percentual muito pequeno que terá complicações. Como você vai comprovar que a droga foi a solução? Porque já é evidente, do ponto de vista científico, que a maioria dos quadros são domiciliares e sem maiores complicações”.
O médico levanta outras questões: o fato de profissionais se colocarem numa posição de propagadores de uma verdade absoluta e prometerem uma solução, o que não é permitido pela ética médica. O código, no artigo 113, diz que não se pode “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.
“É mais um mecanismo de tentativa e erro para que as pessoas se recuperam rapidamente para voltar a estimular economia”, critica. A grande preocupação de Leandro é que, com esse tipo de iniciativa, vai se estar dando acesso a um medicamento muito útil para tratar outras doenças, como malária, lúpus e artrite reumatoide, desabastecendo pacientes que precisam.
Segundo ele, até farmácias de manipulação que fazem a hidroxicloroquina com prescrição médica estão com dificuldade de abastecer porque seus fornecedores também têm limitação.
“Fake news na ciência”
“É um fenômeno de fake news na ciência”, conclui Rafaela Pacheco, médica de família e comunidade, sanitarista, professora de medicina da UFPE Caruaru e presidente da Associação Pernambucana de Medicina de Família e Comunidade.“Não é surpreendente perceber que as pessoas que não têm notadamente habilidade para ler e criticar de forma efetiva um artigo científico caiam nessas orientações travestidas de ciência. Assustador é ver a categoria médica ter esse tipo de comportamento. É compreensível a pressão e angústia dos profissionais de saúde e a sensação de impotência. Eu acolho esse sofrimento, mas desespero não é o melhor conselheiro”, sobe o tom da crítica.
Rafaela avalia que a mídia também tem uma responsabilidade nisso porque as publicações geram ansiedade e uma corrida pelos remédios. “Pode ser que amanhã isso mude, mas o que temos por enquanto são dados sérios publicados por revistas renomadas internacionalmente e não há comprovação de sucesso no tratamento (com hidroxicloroquina)”, aponta.
A médica prevê ainda outro problema na atenção primária: o comprometimento do vínculo na relação entre médico e paciente, “algo muito caro para quem trabalha com medicina de família e comunidade e cuidado longitudinal. Imagina a cobrança pela prescrição do medicamento e a necessidade de explicar tudo isso o tempo todo à população”, pondera.
GGN



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