O negacionismo não se deve à ignorância: é um instrumento político de massas bem desenhado pela extrema-direita.


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Joana Mortágua
“Gripezinha”, “resfriadinho”, será o que lhe quiser chamar, a verdade (científica) é que Jair Bolsonaro tem covid-19. O Presidente da República do Brasil, o mesmo que foi obrigado por um juiz federal a cumprir as regras sanitárias “porque se recusou a usar a máscara em atos públicos e locais no Distrito Federal, [numa] clara intenção de quebrar as regras”, tornou-se um dos 1.668.589 infetados pelo coronavírus no Brasil.

Dez dias antes, a mesma advertência tinha sido feita ao então ministro da Educação, Abraham Weintraub, que participou em manifestações para exigir o encerramento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso através de uma “intervenção militar” de apoio a Bolsonaro na Presidência. E talvez este parágrafo resuma as motivações da postura do Governo brasileiro face à pandemia, muito mais graves do que a estupidez individual.

A dúvida sobre quantas pessoas terão sido diretamente contaminadas por um Presidente infetado e negligente é muito insignificante face aos 66.868 mortos pelo vírus no Brasil. Em qualquer circunstância, e mesmo sabendo que é impossível erradicar a pandemia, este nível de mortandade foi e continua a ser alimentado pela ausência de resposta governamental num país em que os governadores de estados têm de lutar contra o Presidente para impor distanciamento físico ou confinamento.

Muitos meios de comunicação destacaram com justificada ironia a postura negacionista de Bolsonaro em relação à gravidade da pandemia, o confronto com todos os que defendiam medidas de proteção, o incentivo a manifestações populares contra as regras sanitárias, a desvalorização das mortes e o grau zero de compaixão com o sofrimento de um país que está a ser enterrado aos milhares.

Tudo isto ficou marcado em declarações que escandalizaram o mundo:

– “Muito do que tem ali é muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga”.

– “Eu acho que não vai chegar a esse ponto [do número de casos confirmados nos EUA]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele”.

– “Eu não sou coveiro”. (Questionado pela Folha de S. Paulo a respeito da quantidade de mortes)

– “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. (Questionado sobre novo recorde de mortes)

– “Toma quem quiser, quem não quiser não toma. Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína”. (Sobre o medicamento que não está provado que funcione)

– “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”.

– “Medidas exageradas, ao meu ver, ou não, levaram um certo pânico à sociedade no tocante ao vírus. Todo mundo sabia que, mais cedo ou mais tarde, o vírus ia atingir uma parte considerável da população”. (Ao anunciar diagnóstico positivo para o coronavírus?)

Bolsonaro mostrou como o negacionismo acaba em valas comuns. Não por ignorância – o negacionismo é um instrumento político de massas bem desenhado pela extrema-direita. Tem sempre como objetivo justificar a desproteção do povo face a ameaças óbvias, como a emergência climática ou o novo coronavírus, e, em contrapartida, proteger os interesses da elite económica. É tão mais descarado quanto menos se deve à democracia. No caso do Brasil, é utilizado para aprofundar a rutura social, manter o ambiente social e político em tensão pré-violência e pré-golpe, para justificar medidas autoritárias e desviar as atenções dos negócios sujos da família Bolsonaro.

Não há muito a acrescentar, Bolsonaro é um fanático a cometer um crime contra o povo. Dito isto, espero que recupere e viva para ser julgado, não por um vírus, mas pelos tribunais e pelo povo brasileiro.

Artigo publicado no jornal “I” a 9 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Joana MortáguaDeputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.

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