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O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, publicou um artigo, na última segunda-feira, no jornal O Estado de São Paulo, em que reconhece que o país está à beira de um “desastre” por causa das consequências sociais, econômicas e políticas da pandemia. “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”, afirma. E complementa: “enquanto os países mais importantes do mundo organizam-se para enfrentar a crise sanitária em todas as suas frentes, continuamos entregues a estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo”.
Curiosamente, o diagnóstico catastrófico do Mourão não significa uma autocrítica da omissão calamitosa do governo diante da epidemia, mas uma tentativa de atribuir a terceiros a responsabilidade por suas consequências, “pela maneira desordenada como foram decretadas medidas de isolamento social”. A sua análise desconsidera o fato de que todos os países que estão enfrentando a crise com melhores resultados que o Brasil adotaram, ou ainda adotam, medidas de isolamento social, que aqui foram boicotadas pelo presidente, com o aval de seu vice.
Para não ter que olhar no espelho, Mourão resumiu, em quatro pontos, o “estrago institucional que (…) está levando o País ao caos”, que, no entanto, envolvem meio mundo: “polarização”, “imprensa”, “governadores”, “magistrados”, “legisladores”, “federalismo”, “usurpação das prerrogativas do Poder Executivo”, “presidentes de outros poderes”, “prejuízo à imagem do Brasil no exterior”,“manifestações de personalidades”.
Parece que Mourão não percebe que sua narrativa acaba revelando o isolamento do governo em relação aos demais poderes da República, aos entes federativos e à opinião pública nacional e internacional. Ao ocultar o presidente como personagem principal da crise, o vice conclui com a mesma frase dissimulada com que inicia: “há tempo para reverter o desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades constituídas”. Ele quer nos convencer de que a salvação do desastre está em concentrar mais poderes nas mãos do maior responsável por ele próprio.
Mourão acha que a péssima imagem do Brasil no exterior não tem nada a ver com a orientação fundamentalista dada ao Itamaraty, com declarações ofensivas do presidente a outros países e seus dirigentes ou com a escalada do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Pantanal, mas deriva de manifestações de personalidades, com “acusações levianas” de que “o País ameaça a si mesmo e aos demais na devastação da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”. Ou seja, para Mourão o desgaste de imagem não deriva dos fatos concretos, como a crise ambiental, mas de manifestações a respeito.
Não deixa de ser interessante que Mourão inclua, embora pelo avesso, a Amazônia e o meio ambiente entre as prioridades nacionais. Com isso, não deixa de reconhecer, também pelas avessas, o fracasso da sua própria atuação como presidente do Conselho Nacional da Amazônia, que assumiu a coordenação das ações de combate ao desmatamento e às queimadas.
Não é propriamente o Brasil que está fazendo mal a si mesmo. É o presidente quem o desgoverna, destrói instituições e políticas públicas, ataca os outros poderes e unidades da federação, ofende artistas, pesquisadores, jornalistas e organizações da sociedade, além de ser insuperável e persistente em atos e declarações que comprometem a sua própria imagem em todo mundo e, por tabela, afeta também a imagem do país. Bolsonaro e Mourão foram eleitos, mas grande parte dos seus eleitores já percebem que tomaram gato por lebre. Estamos próximos da metade do mandato e, logo mais, o povo brasileiro terá a oportunidade de evitar o prolongamento do desastre.
MÁRCIO SANTILLI
Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.
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