Em nota com o mesmo teor de uma carta de corso, Forças Armadas descartam investigação interna de corrupção e ameaçam CPI, caso o Senado se interponha ao butim
Homero Gottardello, jornalista
A Nota Oficial divulgada pelo Ministério da Defesa, na noite da última quarta-feira, em virtude das evidências cada vez mais patentes de corrupção nas negociações de vacinas, tem duas mensagens subliminares: a primeira, é uma espécie de confissão e, a segunda, uma ameaça. A confissão diz respeito ao histórico de corrupção nas Forças Armadas que, desde o escândalo dos soldos e das compras de cavalos imprestáveis, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), até o golpe encabeçado pelo atual vice-presidente Hamilton Mourão e pelo ex-comandante Eduardo Villas Bôas contra a então presidente Dilma Rousseff, quando esta ameaçou colocar fim à farra do regime previdenciário dos militares, sempre pontuou a corporação – desde o Cabo Roque, herói falsificado da Guerra de Canudos, até os generais, como o brancaleônico Eduardo Pazuello.
Já a ameaça complementa a confissão, advertindo toda a nação, na pessoa do presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz, de que a espoliação posta em prática por este desgoverno está longe do fim e que não será tolerada interposição ao despojo – na verdade, ao roubo, já que a grave ameaça, neste caso, é a forma de se garantir o sucesso do assalto aos cofres públicos.
Portanto, não há mais o que esconder, nem do que duvidar. Se até a última quarta-feira as Forças Armadas se travestiam de guardiãs da soberania nacional, de mantenedoras do estado democrático de direito, de baluartes de moralidade, agora não há dúvidas de que, após assistirem a pilhagem do país por partidos políticos deste ou daquele matiz ideológico, chegou a sua hora de tomar o butim. A nota assinada ministro Braga Netto tem o mesmo teor de uma carta de corso – instrumento que autorizava o corsário a atacar navios e povoados inimigos e lhe dava direito sobre os “lucros” da operação – e não é preciso ser um psicanalista ou um criptógrafo para decifrar, em suas entrelinhas, que as gravíssimas acusações de corrupção apresentadas na CPI sequer serão averiguadas. A impressão que fica é de que há corrupção, mesmo, “e daí?!?” – parafraseando o excrementíssimo.
É que em qualquer força militar do mundo, do Exército de Libertação Popular chinês ao Estado Islâmico, passando pelo Fuzileiros Navais norte-americanos (“Marines”) e pelos os talibãs afegãos, a fala de Aziz provocaria uma verdadeira devassa, para identificação e punição de uma suposta “banda podre”. Mas, ao contrário do que é lógico até mesmo em grupos rebeldes, nas Forças Armadas brasileiras ela gerou um repúdio, uma negação lacaniana. Ao invés da promessa de uma investigação interna rigorosíssima, de punição exemplar, de exclusão dos seus quadros daquele que, porventura, tenha envolvimento com suborno ou propina, Marinha, Exército e Aeronáutica publicaram um desagravo, uma intimidação, uma advertência de que “não aceitarão ataque”. Na prática, toleram a corrupção na medida em que declinam de sua apuração, ameaçando quem aludi-la.
Trata-se, para qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento de História, de uma lógica corsária: à vitória segue o butim e, ao que parece, as Forças Armadas vêem o Orçamento nacional como uma espécie de espólio de guerra, a que teriam direito depois de 36 anos de espera. Ocorre que a pilhagem, mesmo que decorrente do triunfo na batalha, é considerada crime de guerra pelas Convenções de Genebra, desde 1949. Portanto, mesmo que Marinha, Exército e Aeronáutica deflagrassem um novo golpe, tomando o poder e as chaves dos cofres públicos, ainda assim não estariam autorizados ao esbulho do erário. E não fazendo qualquer menção no sentido de coibir a corrupção em seu seio, estão, tacitamente, autorizando o saque – e pior, usando de grave ameaça para encobrir a corrupção e impedir que a Comissão Parlamentar de Inquérito, que representa o Poder Legislativo, o faça.
Mais do que um caso de prevaricação, que agora se estende inusitadamente às Forças Armadas, a CPI da Covid se vê diante de um caso de insubordinação, já que as únicas atribuições constitucionais de Marinha, Exército e Aeronáutica, para além da guarda de nossas fronteiras, é garantir o respeito aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Logo, ao intimidar o Senado frente o desvelamento de um escândalo bilionário na compra de vacinas, que seria encabeçado por um general da reserva, há um claro e evidente desvio, um indubitável descaminho, um inegável distanciamento da legalidade. É estranho que, quando foi classificado, publicamente, de “despreparado” pelo ministro Paulo Guedes, Braga Netto nada fez. Mas subiu nas tamancas ao ser revelado o esquemão em que um militar aposentado abriu uma empresa para negociar vacinas, alegadamente pedindo um pixulé de US$ 1 (um dólar) por dose.
O mais preocupante, no entanto, é o trecho da nota que diz que as Forças Armadas são “fator essencial da estabilidade do País”. Isso porque, subliminarmente, a nota trata de atemorizar os brasileiros, já que não há, em toda a Constituição Federal, um único trecho que sugira esta alegação, que avente essa atribuição, que preconize esse poder à Marinha, ao Exército ou à Aeronáutica. Trata-se de uma invenção, de uma criação, uma ideia, uma fabulação de Braga Netto, que não encontra respaldo nos textos constitucionais de nenhum estado deste mundo, da Coreia do Norte aos Estados Unidos, do Paraguai à França, da Etiópia ao Irã, da Inglaterra à Samoa. Se espelhasse algum tipo de respeito pelos cidadãos brasileiros, a nota – digna de um estudante militar secundarista – prometeria, no mínimo, uma investigação minuciosa de todas as tramoias evidenciadas na CPI da Covid.
Se no primeiro golpe, em 1964, as Forças Armadas deram a justificativa do combate à ditadura do proletariado para tomar o poder. Agora, resta claro que, em um eventual segundo golpe, que é o contracheque do primado militar que vai justificar a ditadura.
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