À estabilidade democrática é necessário a conformação de um pluralismo razoável que concilie diversidade social com um consenso em torno de valores mínimos.


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Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

Em busca do pluralismo razoável: um desafio à democracia no contexto da pós-verdade

por Pedro Mendes Rufino Barbosa

Há  cientistas políticos que enquadram a questão da robustez institucional a partir da dicotomia: instituições estão funcionando ou não. O enfoque analítico repousa com frequência sobre como a agência de indivíduos — assumidos como racionais — são moldadas por custos e incentivos inerentes às configurações institucionais. Nesse sentido, importa a capacidade de enforcement institucional, isto é, em que medida os custos institucionais impostos são suficientes para inibir ou frear violações a regras formais democráticas.

A despeito da ascensão de líderes políticos populistas de extrema-direita com aspirações autoritárias como nos Estados Unidos e no Brasil, bem como diante da emergência de uma polarização severa nestas sociedades, certos analistas desacreditam que a sobrevivência da democracia nestes países esteve sob risco. O argumento mais sistematizado é o de Weyland (2020) conforme o qual a ruptura democrática só seria possível sob duas condições. Na primeira, quando as instituições são fracas, com baixos pontos de veto, e vulneráveis a mudanças e, portanto, teriam baixos mecanismos de frear intentos autoritários. A segunda condição seria quando governos com aspirações autoritárias conseguiriam promover uma substantiva recuperação econômica, após um período de crise, ou ao inaugurar um longo período de bonança. Uma vez que nenhuma dessas condições estiveram presentes em ambos os países, nos últimos anos, logo a ruptura democrática nestes contextos seria improvável. Indicativo disso seria que as instituições nestes países criaram um contramovimento, calcado nos sistemas de pesos e contrapesos, os quais conseguiram conter as ameaças provenientes de Donald Trump e Jair Bolsonaro, e de atores organizados da sociedade civil com pautas antidemocráticas (Pereira, 2020; Weyland, 2020).

Uma das limitações presentes nessas análises é de que elas desconsideram uma assunção elementar do neoinstitucionalismo: instituições são categorias sociológicas e, portanto, são endógenas às sociedades (Przeworski, 2004). Portanto, elas não possuem um efeito causal a priori: “ ‘Não se pode impedir um golpe de Estado por meio um artigo na Constituição’, Guillermo O’Donnell uma vez me comentou”[1] (Przeworski, 2004, tradução livre, p.3). Ademais, configurações institucionais espelham estruturas sociais sobre as quais elas foram erigidas. Por exemplo, o padrão dos sistemas partidáridos no pós-guerra na Europa que quase sempre opôs partidos trabalhistas ou social-democratas com base em sindicatos, de um lado, e partidos liberais/ou conservadores, de outro, tinham um lastro numa estrutura social de classes conformada pelas revoluções industriais[2].

Mais ainda, instituições não operam em um vácuo moral que conforma as ações racionais de indivíduos a partir do estabelecimento de custos e incentivos. Ao contrário, elas são erigidas calcadas em normas socialmente. Como já observava Tocqueville (2005), o cultivo do ideal da igualdade esteve no cerne do desenvolvimento da democracia nos Estados Unidos. Mais do que isso, como já pontuado nos clássicos da sociologia, instituições são por definição conservadoras, na medida em que são voltadas a reforçar as suas normas sociais subjacentes. Dado esse caráter conservador, é difícil explicar processos históricos de mudanças institucionais com base em mecanismos internos às próprias instituições. As explicações evocam em geral choques externos, como transformações estruturais nas sociedades.

Se instituições prescindem de normas sociais compartilhadas, então o funcionamento institucional ótimo não é aquele no qual custos às violações de regras são impostos de forma eficaz, mas quando as regras formais são respeitadas em grande medida pela ampla adesão e incorporação pelos indivíduos das referidas normas sociais subjacentes às instituições. Sob esse prisma, o tipo ideal de funcionamento ótimo institucional seria o “imperativo categórico” kantiano, em vez do panóptico bethaniano. No limite, a frequente necessidade de imposições de punições a quem viola as regras expressa a falta de adesão às normas sociais imanentes às instituições e, portanto, revelam a fragilidade em vez de robustez institucional.

Essa perspectiva elucida que o debate sobre erosão institucional é mais complexo e, então, não se resume à capacidade institucional de contensão de líderes populistas com aspirações autoritárias. Tange todo um processo de transformação social em curso nas últimas décadas que se relaciona ao que se tem caracterizado como a quadro de “pós-verdade”[3], de cujo avanço a ascensão dos referidos líderes populistas e dos grupos anti-democráticos seja provavelmente uma consequência.

Não raro o conceito de “pós-verdade” foi equivocadamente interpretado como um instrumento analítico típico às abordagens pós-estrututuralistas — vulgarmente referidas como “pós-modernas” — cuja ênfase metodológica repousava sobre a desconstrução de valores, linguagem ou instituições sociais, razão pela qual os argumentos teóricos nessa linha incorriam em certo relativismo moral ou cultural. Na verdade, tal conceito se refere à emergência de um quadro de desordem informacional, provocada pela proliferação de sistemas de mídia, abundância de informações e avanço tecnológico que exacerbaram a capacidade de forjar fatos[4].

De um lado, a descentralização e a ampliação do fluxo informacional proporcionaram maior pluralidade de perspectivas no sistema de comunicação social, abrindo espaço para a voz de grupos cujos pontos de vistas foram historicamente marginalizados, bem como para a emergência das chamadas “mídias alternativas”. De outro lado, tal processo redundou na crescente politização e relativização informacional, equivalência no debate público entre qualquer tipo de informação — seja ela com credibilidade ou não —, na exacerbação do viés de confirmação[5] como mecanismo de consumo informacional perpetuado pela lógica de reforço de preferências conduzidas pelos algoritmos; lógica esta que induz a polarização na sociedade. Além disso, essa transformação franquiou a expansão da influência de grupos negacionistas científicos e neofascistas [6].

É trivial atentar que desinformação ou informação desqualificada utilizados de forma política não são fenômenos novos. No entanto, a escala de difusão, poder de influência, capacidade de replicação daqueles que recebem tais informações, e a velocidade de difusão são muito superiores ao contexto pré-digital. Atualmente, desinformação ou má-informação são muito mais difíceis de serem identificadas diante por exemplo dos recursos da inteligência artificial que podem produzir deep-fakes[7] ou forjar ativismo político nas redes sociais por meio da criação de perfis robôs. Portanto, seu impacto político é certamente maior do que aquele testemunhado em períodos históricos anteriores, em virtude das transformações tecnológicas em curso[8].

Pluralismo e pós-verdade

Essa dimensão remete a um ponto interessante debatido na teoria política. Se para as teorias pluralistas a democracia se faz a partir da descentralização de poder entre os diversos grupos sociais — daí a ideia de poliarquia em Dahl (1997) — para Jonh Rawls (2011), em contrapartida, a conciliação entre pluralismo e democracia liberal constitui um desafio. Mais do que isso: o pluralismo estrito é incompatível com a democracia, pois impossibilita a sua estabilidade. Diversos grupos, cujos princípios e perspectivas são integralmente inconciliáveis entre si, são incapazes de acordar uma normativa social nuclear e estabelecer relações recíprocas, entravando a consumação de um pacto social que sustente as instituições políticas.

À estabilidade democrática é necessário a conformação de um pluralismo razoável que concilie diversidade social com um consenso em torno de valores mínimos. Inspirado em Maquiável, o autor sugere a separação da moral social (“dountrinas abrangentes”) das concepções políticas. Assim, o consenso tácito ao pluralismo razoável (“consenso sobreposto”) deve se circunscrever aos valores políticos que sejam razoáveis para todos acatarem, como a igualdade e a reciprocidade: tudo aquilo que se aplica a mim deve se aplicar ao outro; se tenho direitos e liberdades, o outro também deve ter.

Ainda que Rawls não tenha testemunhado os desdobramentos da revolução digital[9], seu enquadramento a respeito dos desafios interpostos ao funcionamento da democracia interpela o cerne do debate contemporâneo. Ao articular esses dois debates, pode-se concluir que a emergência do cenário de pós-verdade, ao dificultar o compartilhamento de visões de mundo e favorecer a confusão, impulsionou as sociedades em direção a um pluralismo não-razoável (ou um pluralismo estrito) que, como tal, provoca a instabilidade das instituições democráticas.

No caso do Brasil e dos Estados Unidos, são crescentes as fraturas e conflitos no nível da solidariedade familiar, perpetuadas por esse quadro, o que alguns autores têm chamado de “polarização afetiva”[10]. Trata-se de um fenômeno que está além da divisão ideológica política, mas se expressa numa divisão normativa e ontológica entre parentes e ou indivíduos pertencentes à mesma comunidade. Ademais, a disseminação da violência política em ambos os países, sobretudo no contexto eleitoral, evidencia o enfraquecimento das instituições políticas cujo devir fundamental reside na intermediação dos conflitos sociais e, por sua vez, no cessamento do mecanismo primário operacionalizado pela violência.

Sob essa ótica, pode-se dizer que à sobrevivência da democracia no longo prazo é imperativo a busca por mecanismos institucionais voltados a fomentar o princípio do pluralismo razoável. A pertinência desse conceito relaciona-se a duas dimensões: por um lado, é muito improvável a reversão do processo de descentralização dos sistemas de mídia e, em certo sentido, indesejável a renúncia ao pluralismo por ele facultado; por outro lado, é preciso criar mecanismos institucionais, sobretudo nos sistemas de comunicação social, provavelmente com coordenação global, que fortaleçam e promovam um consenso sobreposto em torno dos valores como democracia e os direitos humanos.

Pedro Mendes Rufino Barbosa – Pós-doc no Centro de Estudos da Metrópole – USP. Pesquisador associado ao Grupo de Estudos de Economia Política (GEEP/IESP)

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp


[1]One cannot stop a coup d’etat by an article in the constitution,” any article in the constitution, Guillermo O’Donnell once remarked to me”.

[2] HUBER, E.; STEPHENS, J. D. Development and crisis of the welfare state: parties and policies in global markets. Chicago: University of Chicago Press, 2001.

[3] WAISBORD, S. Truth is what happens to news: On journalism, fake news, and post-truth. Journalism studies, v. 19, n. 13, p. 1866–1878, 2018.

[4] TUMBER, H.; WAISBORD, S. Media, disinformation, and populism: problemas and responses. Em: TUMBER, H.; WAISBORD, S. (Eds.). . The Routledge Companion to Media Disinformation and Populism. 1. ed. New York: Routledge, 2021. .

WAISBORD, S. Truth is what happens to news: On journalism, fake news, and post-truth. Journalism studies, v. 19, n. 13, p. 1866–1878, 2018.

[5] Um viés psicológico em que o receptor da mensagem tende a acreditar em informações que reforçam suas crenças prévias.

[6] HAWLEY, G. Media and the “alt right”. Em: TUMBER, H.; WAISBORD, S. (Eds.). . The Routledge Companion to Media Disinformation and Populism. 1. ed. New York: Routledge, 2021. p. 151–159.

[7] Tecnologia de inteligência artificial que forja rostos e voz de maneira realistas, conseguindo, com isso, forjar ações e discursos em geral de políticos no intuito de difamá-los.

[8] SALGADO, S. Disputes over or against reality? Fine-graining the textures of post-truth politics. Em: TUMBER, H.; WAISBORD, S. (Eds.). . The Routledge Companion to Media Disinformation and Populism. 1. ed. New York: Routledge, 2021. p. 101–109.

[9] Rawls faleceu em 2002.

[10] IYENGAR, S. et al. The origins and consequences of affective polarization in the United States. Annual Review of Political Science, v. 22, n. 1, p. 129–146, 2019.


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