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Quando o nível da água subiu e alagou centenas de cidades do Rio Grande do Sul, mais de meio milhão de pessoas tiveram que abandonar suas casas o mais rápido possível para salvar suas vidas.
Para trás, não ficaram apenas veículos e móveis afundados na água e na lama, mas também objetos que contam histórias.
São quadros, fotos, bandeiras, brinquedos e faixas que eternizaram momentos únicos e que agora podem ter sido apagados para sempre.
A dona de casa Sabrina Almeida de Almeida Weiss, de 46 anos, chora durante o tempo em que fala à reportagem sobre o quadro que a mãe falecida dela pintou. A água subiu 1,6 metro dentro da casa dela e, embora não tenha atingido a obra, a umidade causada pelo alagamento (que durou cerca de três semanas dentro do imóvel) fez com que a principal lembrança que ela guarda da mãe fosse danificada.
Na tentativa de amenizar a tristeza que ela sentiria ao olhar os estragos pessoalmente, o marido e o filho de Sabrina chegaram a fazer vídeos do local ainda alagado para que ela se acostumasse.
De nada adiantou.
Quando ela voltou para casa, precisou quebrar o que restou da cama para acessar os gavetões que guardavam os álbuns de fotos que ainda boiavam na água acumulada durante a enchente.
Os mais significativos para ela são os álbuns de casamento da mãe, de 1973, e o que possui as fotos do aniversário de 15 anos dela, de 1993.
"A reação ao encontrar a casa alagada foi muito difícil. Foram dias de muito choro, muita tristeza. Os bens materiais, nós trabalhamos e podemos reconquistar. Mas o quadro, os álbuns, as fotos e as memórias são tão lindos e não tem como refazer ou recomprar. São memórias muito fortes", diz chorando à reportagem.
A BBC News Brasil conversou com pessoas que perderam objetos de grande valor sentimental nas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul. São objetos pessoais e lembranças de família que foram tomados pela lama.
Todos os entrevistados se emocionaram enquanto relembravam suas histórias.
Alexandre Valverde, psiquiatra com mestrado em filosofia contemporânea na universidade francesa de Sorbonne, encoraja as pessoas a guardarem essas lembranças significativas, mesmo que danificadas, para que elas sejam lembradas no futuro como parte dessa história.
“A perda desses objetos pode levar à sensação de uma falta de consistência, de uma falta de nós. Se privar deles pode significar a privação do acesso imediato a essas histórias”, diz.
Marcas que contam histórias
Em entrevista à BBC, o psiquiatra Alexandre Valverde afirma que há maneiras diferentes de lidar com a perda de memórias, mas ele indica que a melhor delas é assumir o que aconteceu.
“Se você tem ali um resquício daquele objeto, guarde-o como uma relíquia que sobreviveu, pois ele não só conta a história do quadrinho que estava preservado, mas do acidente também. Se você tem um quadro mofado ou com lama, a partir de agora ele vai também ser um testemunho dessa tragédia”, diz.
O psiquiatra diz que assumir as marcas deixadas pela tragédia ajuda a superar este ciclo, entender o que passou e deixar lições para o futuro.
Ele lembra que há inclusive uma técnica usada na cultura japonesa, chamada Kintsugi, que busca não apenas restaurar, mas também ressaltar as emendas de cerâmicas quebradas. As rachaduras são coladas com uma resina colante, geralmente com ouro ou prata.
O ouro, segundo ele, tem um significado simbólico de dar valor àquela experiência.
“Isso é uma maneira de você assumir e se apropriar daquele fato, não fingir que ele não aconteceu, não tentar disfarçar que aquilo não se produziu, não tentar esconder aquela questão. É assumir que você passou por aquilo e que aquele objeto carrega um novo significado. Ele resistiu e agora carrega essa história em si”.
Aniversário de 15 anos e foto do pai
A caixa de supermercados Paola Meneghetti, de 27 anos, perdeu a foto que ela mais gostava do aniversário dela de 15 anos. Cuidadosamente emoldurada num quadro, a foto foi completamente danificada pela enchente que cobriu até o teto a casa onde ela mora na cidade de Eldorado do Sul.
A área urbana do município ficou 100% alagada durante as inundações que atingiram a região.
“Dá uma tristeza muito grande ver a foto assim, mas graças a Deus eu tenho toda a minha família viva. E, se isso aconteceu, foi vontade de Deus e ele deve ter um propósito melhor para todos nós”, diz.
Paola conta que chorou muito ao perceber que a imagem que ela guardava com mais carinho também foi destruída pelas águas. Trata-se de uma foto pequena do pai, que faleceu quando ela tinha 6 anos, e que ficava no fundo de um pequeno binóculo antigo.
“Minha vó me deu essa foto quando eu tinha 6 anos. Ela ficava dentro de uma caixinha para não pegar sujeira e hoje eu a encontrei destruída. Fiquei muito triste mesmo. Só consegui salvar umas fotos que eu tinha guardado dentro de um saco de lixo e uma bíblia”, diz.
Ela diz que vai reconstruir a vida, ao lado do marido, na cidade de Eldorado do Sul. Mas afirma que não continuará no município em caso de uma nova enchente.
“A gente deixa de tomar um açaí, de comer algo bom e se priva de muitas coisas para ter algo melhor para a água vir e destruir tudo. A gente não pode viver só para trabalhar e construir algo que dura meses. Se alagar assim de novo, a saída é se mudar”, afirma.
O psiquiatra Alexandre Valverde afirma que todo esse estresse causado tanto pela perda de bens com valor afetivo quanto pela dificuldade em restabelecer a vida normal pode causar uma série de transtornos mentais.
“Toda essa situação de insegurança pode causar um transtorno de estresse pós traumático, que pode se manifestar como uma ansiedade crônica, uma depressão crônica e uma série de outras características próprias desse transtorno”, diz.
A melhor maneira de evitar isso, segundo ele, é fazendo acompanhamento psicológico e buscar apoio no convívio coletivo. Ele diz que a união da vida comunitária é uma maneira de se recompor de maneira mais consistente, principalmente num cenário em que bairros e cidades inteiros foram afetados pelo mesmo problema.
Lembranças da avó
Moradora do bairro Humaitá, em Porto Alegre, a auxiliar administrativo Liziane Ribeiro teve sua casa completamente inundada durante as enchentes. Nesta quinta-feira (30/5), quando retornou para fazer a primeira limpeza na casa, um ex-colega dela de trabalho que a ajudava na faxina encontrou em meio à lama um álbum de fotos antigo, com imagens de família.
“Eu já chorei muito. Perdi tudo o que eu tinha, mas o que a gente mais sente falta são as memórias, as fotos, os álbuns. Só encontrei esse álbum graças a meu amigo. Nele tem fotos muito importantes, incluindo quatro ou cinco fotos que tenho com a minha mãe, que morreu quando eu tinha 7 anos. Vou tentar salvá-las”, diz com tom de angústia.
Liziane também demonstra surpresa por ter conseguido recuperar uma planta que ela comprou pouco antes do alagamento e que tinha muito carinho. Por outro lado, se entristece por não ter conseguido recuperar a bíblia e o casaco que pertenciam a avó e que ela usava no dia em que faleceu.
“Além de tudo isso, não tenho mais uma cama, uma TV, não tenho nada. Não consegui praticamente nenhuma doação. Só tenho quatro ou cinco peças de roupa que minha família deu. Estou morando na casa do meu filho desde a enchente e tive mais dificuldade em conseguir doações porque não estava em abrigo”, conta.
Bandeira e estandarte
Beatriz Gonçalves Pereira, conhecida como Bia da Ilha, de 62 anos, ainda não tem certeza do estrago causado pelas enchentes na comunidade onde ela vive na Ilha da Pintada, em Porto Alegre. Desde o início das enchentes, ela só voltou até o local uma vez num barco a remo, mas até hoje a água não baixou completamente.
A casa de madeira funciona como escola de samba, centro de umbanda e quilombo de resistência. Mas, além dos instrumentos musicais, fantasias e objetos pessoais, o que ela mais se preocupa é o estandarte da escola de samba Unidos do Pôr do Sol, da qual é presidente.
“Meu maior desejo é encontrar o estandarte, a bandeira, o meu congá. Com o tempo que a água está lá, não vamos aproveitar nenhum tecido. Conversei com a minha mãe para a gente guardar tudo o que conseguirmos recuperar para provar que tudo isso existia”, conta chorando à reportagem.
Ela diz que tem esperança de que consiga restaurar alguns instrumentos de tecido sintético, mas está sem esperanças de reformar fantasias e adereços em couro.
Mãe de santo, Bia da Ilha é uma referência para a comunidade negra na Ilha da Pintada. Ela foi grafitada na lateral do prédio do Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer) e da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), na região central de Porto Alegre.
A obra, da suíça Mona Caron e do paulista Mauro Neri, foi feita em homenagem aos 250 anos da capital gaúcha.
Bia conta à reportagem que o último desfile da Unidos do Pôr do Sol ocorreu em março, num carnaval adiado por conta das chuvas que alagaram a região em novembro de 2023.
Mesmo após ter a casa e a escola de samba destruídas pela enchente, Bia diz que entende o que ocorreu e que vai reconstruir tudo mais uma vez.
“A natureza é soberana, os rios sangram e só buscam o que é deles. Vamos nos reerguer e eu vou embora, mas essa história vai ficar para dar ânimo e força para que a juventude negra, as crianças e adolescentes não tenham medo, mas respeitem a natureza”, diz.
Assim como Bia da Ilha, Sabrina diz que vai fazer o possível para restaurar os álbuns da família e preservar as recordações.
Ela diz que especialmente o quadro tem um valor sentimental incalculável para ela e que olhar para a arte pintada pela mãe já falecida é o mesmo que se aproximar dela.
“Minha mãe era uma mulher maravilhosa e eu amo este quadro porque me lembra muito dela. Eu encontrei uma pessoa abençoada que vai tentar restaurá-lo. Vai ser muito especial porque uma perda dessa seria irreparável”.
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