A história está convocando a esquerda, movimentos sociais e sindicais a uma mudança profunda de conteúdo, estratégia e organização

Vencer as eleições com Lula será fundamental, mas passa longe de ser suficiente para os desafios que serão abertos
Ricardo Stuckert / Presidência da República
Nesse novo ano, vencer as eleições com Lula será fundamental, mas passa longe de ser suficiente para os desafios que serão abertos após a última corrida eleitoral a ser disputada pelo líder histórico da esquerda brasileira. Isso porque embora Lula siga forte junto a grande parcela da população, em contrapartida, os partidos e movimentos da esquerda – sobretudo o sindical – vivem uma crise histórica.
Destaco rapidamente dois elementos dessa crise: o avanço do neoliberalismo radical e a domesticação da esquerda. A fase atual do capital gera crise ao aprofundar a exploração especialmente sequestrando o orçamento dos estados para o sistema financeiro – o que provoca imensa descrença do povo na capacidade da chamada democracia liberal resolver seus problemas concretos. Além disso, e não menos importante, o avanço neoliberal desmantela as proteções laborais, o que aprofunda a espoliação pelo trabalho.
No Brasil vivemos isso: a reforma trabalhista foi um duro golpe nos sindicatos e nas classes trabalhadoras, canibalizando o mercado de trabalho e abrindo espaço para jornadas similares às do Século 19, baixa remuneração, mudança no estilo de vida e o adormecimento da pertença de classe, ao individualizar crescentemente o processo do trabalho. Resultado: precarização da vida, empobrecimento, desalento.
Além disso, corre paralelo e é absolutamente funcional a esse processo o novo modus de sociabilidade ditado pelas tecnologias e redes sociais, com todas as implicações sociológicas e culturais decorrentes disso. Elas reforçam os elementos de dispersão e hiper fragmentação próprias do neoliberalismo, hábil em estimular a criação de milhares de “tribos” que diluem a disputa política numa miríade de causas incapazes de encontrar um elo comum entre si.
O pior: boa parte dos novos espaços virtuais são comandados por grandes empresas capitalistas, as Big Techs, que simplesmente controlam a arena do debate público a partir de algoritmos produzidos sob medida para ampliar seus lucros, a exigir mais atenção – e produção – em menos tempo, além de condicionar a forma de comunicação dos atores políticos – e por vezes boicotar explicitamente atores críticos do sistema.
A outra face da moeda da crise de nosso campo é a domesticação da esquerda. Enfraquecida desde a queda do muro e do avanço triunfal do capitalismo, a esquerda ainda não encontrou seu novo programa e seu novo horizonte. Frente ao poder colossal do capital financeiro, à força da cosmovisão individualista que se segue a isso – e se popularizou – e às ameaças do imperialismo que chantageia os estados nacionais de países periféricos, a brecha encontrada foi a aplicação de um programa mínimo, capaz de enfrentar a precarização total da vida e tirar as classes trabalhadoras da fome e da indigência, mas incapaz de produzir grandes mudanças na qualidade de vida, novas formas de ver o mundo e um novo projeto de sociedade.
Na luta social, do ponto de vista da esquerda, os sindicatos perderam força com os ataques neoliberais, mas não só. São vítimas também da acomodação de suas classes dirigentes ao programa mínimo, da relação domesticada com governos e da falta de renovação dos seus quadros dirigentes. Tem sido alvo crescente, as vezes de forma injusta, da descrença popular.
Da mesma forma os partidos, em especial o meu, o PT, que a despeito de ser ainda o único partido popular da esquerda e ter grandes méritos, fez do programa mínimo seu horizonte, entregou-se completamente à estratégia segundo a qual “basta a eleição e o parlamento”, mergulhou na crença de que tudo se resolve dentro das instituições e esqueceu de disputar maioria social.
Hoje, na prática, os caminhos do PT são definidos por seus parlamentares, o que faz sentido diante do caminho escolhido, mas empobrece estratégias de longo prazo, uma vez que esses atores preocupam-se, por sobrevivência, com seus interesses eleitorais imediatos. Tem faltado, com exceções, lideranças ousadas, imunes ao temor da perda de mandatos. Está faltando um projeto, quadros elevados das disputas burocráticas e um tanto de utopia e teoria nos debates tomados por um pragmatismo atroz.
Num passado não tão distante, o debate antigo da esquerda sobre “o que é política?”, era sempre respondido com algo do tipo: “política não se restringe aos poderes constituídos, e é papel dos partidos ativá-la na vida cotidiana das massas”. Pois bem, a esquerda partidária aderiu à definição liberal que separa rigidamente a política e suas instituições formais da economia e da sociedade. Ter papel político hoje, inclusive para as novas gerações dos partidos, se limita a ter mandato ou estar de alguma forma em instituições formais com “a caneta na mão”.
Esse diagnóstico crítico não pretende pregar a renúncia à disputa institucional. Longe disso. Mas é preciso lembrar que a ação política institucional é um meio e não um fim. Ela deve manter-se fortemente conectada ao programa e à grande estratégia de construção de maioria social, essa sim única maioria capaz de nos conferir poder real.
O ator fundamental da mudança não é o parlamento, é o povo, tendo ele nas instituições seus importantes representantes, que vão, digamos, abrir caminhos ou conter danos, numa relação dialética de assimilação e superação com essas instituições. Mediando e qualificando a relação, partidos com senso programático forte e quadros dirigentes o quanto possível isentos de interesses eleitorais imediatos. Nada disso é novo, são antigos preceitos que cabe recuperarmos na memória.
Hoje, porém, a estratégia da esquerda caminha somente pelo terreno pantanoso dos acordos nas instituições de um sistema político amplamente rejeitado pelo povo. Um sistema apodrecido, cujas emendas impositivas são um grande símbolo – emendas contra as quais a esquerda acomodada nas instituições não organiza nenhum levante.
Uma esquerda única e puramente parlamentar será sempre uma esquerda liberal e mediana. Portanto, aquém de mudar estruturalmente a vida do povo. Logo, descartada por ele quando as contradições se tornarem insuportáveis, o que em minha opinião está acontecendo em nossos tempos, embora não seja completamente visível para as direções da esquerda pela força que Lula ainda é capaz de ter, o que camufla, nas eleições, os sinais evidentes de esgotamento.
O programa mínimo e a guinada liberal na economia e na política deram certo no Brasil no início desse século porque aproveitamos bem uma oportunidade ímpar de crescimento na periferia do capitalismo, face aos acontecimentos no mundo àquela época. Esse cenário não existe mais. Pelo contrário, poderosos atores internacionais voltam seu olhar à América do Sul, enquanto a economia mundial segue instável. Insistir na mesma estratégia, sobretudo quando não tivermos mais o guarda-chuva eleitoral de Lula, será um grave erro.
Por falar em Lula, o Brasil tem essa especificidade, com nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. O tamanho que ganhou o coloca em condições de elevar-se acima desses atores e liderar uma tentativa de estabilização da crise. A condição imposta pela elite para que ele cumpra esse papel, é, no entanto, a observância de estritos limites programáticos, que tornam o programa mínimo ainda menor.
Mas se aproxima o último ato eleitoral de Lula. Após isso, o que fazer? Primeiro, vencer as eleições do ano que vem com ele, o que não será fácil, embora possível e até provável. Mas frente a todo o quadro que modesta e resumidamente escrevi acima, isso não basta.
Claro, Lula seguirá um ator relevante, mas noutro papel, que pode ser ainda mais importante, caso ele se disponha a cumprir finalmente um papel mobilizador, ainda que fora de mandatos. Estatura não lhe falta. Nesse quadro, a esquerda brasileira precisa urgentemente refazer seus caminhos estratégicos, seus métodos de organização e, sobretudo, voltar a ter um projeto consistente com etapas e objetivos além de vencer a “próxima eleição”. Um projeto capaz de tocar nos elementos centrais da exploração do sistema financeiro e do grande latifúndio, intocados pelo programa mínimo e que sangram o povo brasileiro. Capaz também de refazer a disputa ideológica e cultural, frente à ideologia que domina o imaginário das classes trabalhadoras.
O sucessor de Lula não será apontado por ele ou por alguma cúpula. Só pensa assim quem já reduziu tudo às eleições. Seu surgimento será fruto de um novo ciclo histórico de luta que já está aberto com o desgaste evidente da estratégia do programa mínimo. Na história as lideranças se fazem com o aval do povo, não com canetadas, mesmo que a tinta seja manuseada pelas mais admiráveis mãos. É a luta popular quem forja os líderes e é o curso da história que dita o ritmo e a direção.
O certo é que não bastará mais, até mesmo para a esquerda atual, ganhar eleição, muito embora as eleições sejam um momento importantíssimo de mobilização e disputa do poder. O desafio é dar conta de reconfigurar-se a partir da mudança estrutural que o planeta vive. E essa mudança está a exigir, pragmaticamente, a volta de uma esquerda “não liberal”, que desvela abertamente as contradições do capitalismo e a ação de seus operadores, que disputa os sentidos do mundo, da vida cotidiana e especialmente do futuro. Que se coloca outra vez como crítica do sistema, disposta a disputá-lo para mudá-lo, sem acomodar-se.
O capitalismo neoliberal selvagem, com suas novas formas de sociabilidade e dominação pela tecnologia, com sua ultra concentração de renda, dirigido pela ofensiva do império ocidental e suas guerras neocoloniais, cada vez mais próximas da América do Sul, engolirá as esquerdas hiper mediadoras e liberais órfãs de líderes como Lula.
A palavra de ordem deveria ser “mobilização”, mas não se faz isso com um programa mínimo, sem algum nível de radicalidade e enfrentamento dos interesses de classe concretos da vida do povo. No caso brasileiro, às esquerdas céticas quanto à possibilidade de revoluções, cabe ao menos o caminho de reformas fortes, a terem como norte o cumprimento pleno da constituição de 1988, que poderia ser, ela mesma, o horizonte programático empunhado por cada brasileiro na luta por maioria social. Porém, mesmo isso, que não é pouco, não se faz com uma esquerda puramente parlamentar.
O mantra das “políticas públicas” deveria dar lugar ao chamamento por reformas. Os apelos à responsabilidade fiscal, emprestados da teoria econômica neoliberal, devem dar lugar ao cumprimento dos direitos sociais da constituição. A defesa da democracia não deveria ser a defesa pura e simples das “instituições”, mas a oportunidade de uma campanha ampla em defesa da democracia social e dos sentidos democráticos das reformas irrevogáveis para a melhoria de vida do povo brasileiro.
Nessa missão, que não é imediata, claro, mas que precisa começar a ser traçada, o PT segue sendo fundamental. Os movimentos sociais e sindical e os demais partidos de esquerda também. Porém, a história está nos convocando a uma mudança profunda de conteúdo, estratégia e organização. Caso não correspondamos ao chamado não será o fim da luta social nem da esquerda, muito menos da história. Será o fim dessas organizações e do seu ciclo histórico.
Sobre os escombros delas se erguerá a luta do povo, que sempre segue seu curso e sempre encontra suas lideranças, como outrora encontrou Brizola, Prestes e o próprio Lula, surgidos todos, sem exceção, de projetos disruptivos em viradas de ciclo – contra o golpe militar, contra a velha república e pela volta da democracia, respectivamente.
O ano de 2026 valerá por uma década. Que lutemos para Lula vencer as eleições, mas que possamos também caminhar, na esquerda, para superação da acomodação. Sem isso, caminharemos com o programa mínimo, com a mínima organização, e de recuo em recuo, de desgaste em desgaste, para longe da simpatia popular e para longe do futuro.
Sem medo de ser feliz, escolhamos o agora, mas também o horizonte. Essas escolhas não se contradizem.
Pedro Alcântara, cientista político e dirigente estadual do PT em Pernambuco
Publicado originalmente por: Opera Mundi
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