Num mapeamento dos riscos de violência e extremismo no Brasil, Abin alertou sobre potencial de expansão de grupos ultranacionalistas

Os movimentos neonazistas representaram a ameaça de “maior potencial de crescimento” no Brasil entre 2019 e 2020.
A informação faz parte de documentos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e que foram obtidos após uma longa batalha judicial pela Fiquem Sabendo, organização sem fins lucrativos especializada em transparência pública. Desde meados de dezembro e pelas próximas semanas, o ICL Notícias traz com exclusividade dezenas de informes, relatórios e dados até hoje mantidos como confidenciais pela Abin.
Num relatórios sobre os riscos do terrorismo e dos atos de violência no Brasil e no mundo, de 6 de abril de 2020, a Abin traçou um mapa das diferentes correntes extremistas no país e seu potencial de representar um risco para segurança pública.
Naquele ano, a Abin alertava para o fato de que “ataques perpetrados por indivíduos ou grupos inspirados por ideologias extremistas, não necessariamente de caráter islâmico, vêm ganhando espaço no Brasil, como se verificou no massacre de Suzano, em 13 mar. 2019, e nas ameaças da célula ecoextremista Sociedade Secreta Silvestre (SSS) a autoridades públicas brasileiras em 2019”.
“Adeptos desses movimentos compartilham uma visão radicalizada de mundo e defendem o uso da violência como meio de promoção de seus ideais”, alertou.
Ainda que o risco fosse identificado em outros grupos ideológicos também, a Abin era explícita ao mencionar a ameaça da extrema direita.
“Com relação ao ultranacionalismo e ao neonazismo, esses movimentos se fortaleceram em 2019, com o aumento de ataques em diversos países do mundo”, disse. “No âmbito internacional, o crescimento dos grupos ultranacionalistas tem como principal motivação o aumento da imigração no continente europeu. Esses grupos são contrários ao que acreditam ser uma “islamização da Europa” e respondem a essa “ameaça” com ataques violentos”, explicou.
De acordo com a agência, o crescimento mundial do neonazismo estava influenciando a reorganização de grupos no Brasil, como o Crew 38 e Hammerskin Nation, o Misanthropic Division e o Combat 18/Blood & Honour/Aryan Strikeforce.
“Recentemente, houve aumento de ataques pontuais contra indivíduos que não se enquadram no estereótipo defendido por esses grupos. Desde a realização das operações policiais Azov e Hateless, em 2016 e 2017. respectivamente, os neonazistas brasileiros adotaram medidas de segurança para dificultar as ações policiais e de Inteligência”, constatou a Abin.
100 membros ativos em 2020 defendendo “revolução armada”
A agência, naquele momento, tentava ainda decifrar qual seria o tamanho da ala mais violenta do grupo. “A Nova Resistência, representante da ideologia da Quarta Teoria Política, é movimento favorável aos valores tradicionais e à religiosidade e contrário ao liberalismo em todas as suas formas. Surgiu no Brasil, em 2014, e expandiu-se pelo território nacional tenda constituído células em vinte unidades da federação”, alertou. “Haveria, ao menos, uma centena de membros ativos promovendo ações de propaganda no país. O grupo defende a revolução armada como resistência popular legitima”, destacou a agência.
“Além da Nova Resistência, grupos de ideologia integralista têm ressurgido no país e
demonstram tendencia a radicalização, como constatado a partir do ataque promovido a sede da produtora do humorístico “Porta dos Fundos”, em dezembro de 2019”, disse.
“Há indícios de que membros de grupos integralistas possuam vínculos com a Nova Resistência, que comentou o ataque em suas redes sociais como “inevitável”, afirmou a Abin.
Intolerância religiosa
O informe também aponta como a intolerância religiosa de matiz não islâmica havia aumentado em 2019. “O uso de violência ou ameaça de violência tornou-se mais frequente, com emprego de armas de fogo, como fuzis e metralhadoras. Em alguns estados brasileiros, grupos criminosos organizados têm se envolvido em atos de intolerância religiosa com proibição de práticas de religiões de matriz africana territórios. Os eventos de intolerância religiosa são subnotificados, o que dificulta o monitoramento, análise e enfrentamento da ameaça”, afirmou.
Já naquele momento, a Abin destaca como a radicalização extremista violenta em ascensão no Brasil estava acontecendo nos fóruns da Internet e na deepweb. “Jovens, em sua maioria do sexo masculino, com histórico de problemas familiares, psiquiátricos e rejeição, encontram em grupos online um local de propagação de discursos radicais e de incentivo ao cometimento de massacres”, disse.
“Em 2019, os ataques à escola Raul Brasil, em Suzano/SP, representam o crescimento desse fenômeno. Após o atentado, ameaças de atos semelhantes espalharam-se pelos estados da federação. Em quase todos os estados, até o momento, foram relatados cerca de 80 incidentes. A maior parte deles restringiu-se a ameaças, os demais foram pequenas ações solucionadas pelas forças de segurança locais”, alertou.
Na web, a Abin havia identificado “uma mistura de ódio a gays, negros, mulheres e minorias em geral, apologia ao nazismo e à cultura dos “celibatários involuntários” (incels), símbolos do El, uso de roupas pretas e manifestações contrárias ao marxismo ou à esquerda”.
Projeção
A Abin não disfarçava a preocupação com o aumento da violência no país. “Em 2020, é provável que atos de extremismo violento, baseados em ideologias difusas, aumentem no Brasil. Com o crescimento do fenômeno em nível internacional, a tendência é que novos grupos, movimentos e ideologias surjam no Brasil por espelhamento”, disse.
“Com relação ao anarquismo insurrecional, é provável que permaneça representando baixo nivel de ameaça, restringindo-se a atos pontuais e manifestações em ambiente virtual. No que concerne ao ecoextremismo, a tendência é de fortalecimento do movimento com a criação de novas células na América Latina e na Europa”, disse.
Mas o alerta principal vai para o movimento de extrema direita. “A mesma tendência verifica-se nos grupos ultranacionalistas e neonazistas, sendo essas as correntes que apresentam maior potencial de crescimento e fortalecimento”, completou.
Ecoterrorismo
Um trecho do informe é ainda focado na ameaça do ecoterrorismo e às ameaças feitas contra o governo de Jair Bolsonaro.
“No Brasil, o expoente do ecoextremismo é a célula Sociedade Secreta Silvestre (SSS)”, disse.
“Já publicou onze comunicados, nos quais reivindicaram ataques com artefatos explosivos ou ameaças a autoridades públicas. Os fatos apontam para uma célula local, detentora de rede de apoiadores resilientes. Seus integrantes demonstram capacidade efetiva para empregar medidas de antivigilância”, apontou.
“Em 2019, a célula brasileira representou uma das principais ameaças no Brasil. Em
janeiro de 2019, três suspeitos foram detidos em Alto Paraíso/GO, pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e pelo Departamento de Polícia Federal (DPF). após tentativa de ataque, em dezembro de 2018, contra o Santuário Arquidiocesano Menino Jesus, em Brazlândia/DF, e ameaças contra o presidente eleito, Jair Bolsonaro, e os então futuros ministros, Ricardo Salles e Damares Alves”, disse.
“Em abril de 2019, a célula reivindicou o incêndio de duas viaturas no posto da Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). na Floresta Nacional (Flona) de Brasília. A célula também fez novas ameaças aos ministros Ricardo Salles e Damares Alves. inclusive com ameaça de emprego de toxina biológica letal, e ameaçou de morte eventuais visitantes que realizem ecoturismo na Flona, principalmente, nos finais de semana”, completou.
Como foram obtidos os documentos
O acesso aos documentos da Abin ocorreu depois de seis anos de batalha por parte da Fiquem Sabendo e é considerado como um divisor de águas para a transparência no Brasil.
A ação segue tramitando para garantir que todos os documentos sejam entregues, sem tarjas e n íntegra, como é o caso ainda de vários informes.
Documentos classificados são informações públicas que, por motivos de segurança da sociedade ou do Estado, são temporariamente mantidas em sigilo. Os documentos obtidos já foram desclassificados e, portanto, estão fora do prazo de sigilo. De fato, entre 2014 e 2020, mais de 400 mil documentos federais perderam o sigilo.
Mas o acesso nem sempre está garantido. Assim, o projeto Sem Sigilo começou em 2019, quando a entidade convocou voluntários para pedir documentos cujo prazo de sigilo expirou. A iniciativa coletou milhares de páginas de dezenas de órgãos, mas enfrentaram resistência de entidades como Abin, GSI, Ministério da Defesa, Forças Armadas, Polícia Federal e Itamaraty.
Em 2020, eles ajuizaram uma ação contra a Abin. A ideia era enfrentar o órgão mais resistente à transparência pública porque apostavam que, se ganhassem, outros cairiam por gravidade.
Em 2021, o MPF acolheu parcialmente os argumentos e sugeriu que a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso, analisasse os documentos. Corretamente, o Congresso se recusou, afirmando não ser sua competência.
Em 2023, a ação sofreu uma derrota em primeira instância. A Justiça aceitou o argumento da União de que a Abin poderia decidir sozinha o que divulgar ou não — mesmo contrariando o texto da LAI.
Mas, em maio de 2025, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido e condenou, por unanimidade, a União e a Abin a entregar um conjunto de documentos mantidos ilegalmente sob sigilo.
A decisão tem um impacto profundo, já que:
Estabelece jurisprudência: é a primeira decisão em nível federal que reafirma que nenhum órgão está acima da LAI — e que seus prazos não são opcionais.
Cria precedente: o entendimento agora pode ser replicado para cobrar outros órgãos que seguem descumprindo a Lei, como o Itamaraty e as Forças Armadas.
Desmonta o sigilo eterno: reafirma que a transparência é a regra, e o sigilo, a exceção — com prazo.
Publicado originalmente por: ICL Notícias
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