Historiador canadense busca mostrar como racismo e misoginia são elementos constitutivos do neoliberalismo.

O neoliberalismo e a direita “populista”
por Luis Felipe Miguel
“Neoliberalismo” é um daqueles termos que se tornaram armas nas disputas discursivas e que, assim, foram perdendo precisão. Seu uso é quase sempre pejorativo; hoje nenhum neoliberal reivindica para si o rótulo. É quase como os simpatizantes do fascismo e do nazismo, que pululam por aí, mas quase nunca assumem essa inclinação. Por causa desta situação, da contaminação da palavra por seu uso nas controvérsias políticas, há autores que preferem aposentar o termo. Mas, com isso, perdemos a capacidade de interpelar um fenômeno político-ideológico de longo alcance.
Uma das questões que se coloca na análise do pensamento neoliberal é a aparente contradição entre sua exaltação da liberdade individual e sua aliança política perene com setores ultraconservadores, que pegam a observância estrita de regras impositivas no que se refere a questões como a moralidade sexual, os papéis de gênero, o controle do próprio corpo. Ou entre o individualismo abstrato da doutrina e a aceitação de hierarquias que subordinam as pessoas de acordo com seu sexo ou cor da pele. Ou, ainda, entre esse mesmo individualismo e a exaltação de uma coletividade abstrata, dotada de clarividência e de valores morais superiores, própria do discurso “populista” da nova direita extremada.
Podem ser o Partido Novo e o MBL no Brasil, Javier Milei na Argentina, Peter Thiel e outros “libertarianos” grudados a Trump nos Estados Unidos: o fato é que os neoliberais enchem a boca para falar de liberdade quando a questão é impedir qualquer controle público sobre a ação das empresas, mas andam abraçados com fundamentalistas religiosos e se opõem ao direito ao aborto, lutam contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, defendem o familismo mais retrógrado, flertam com o racismo.
Uma parte disso é mero oportunismo. Sem apoio dos conservadores religiosos, os neoliberais não teriam chance numa competição eleitoral. Ícones da escola austríaca, como o anarcocapitalista Murray Rothbard, assumiram essa verdade de público. Alguns anos antes de morrer, em 1995, Rothbard estabeleceu programaticamente a necessidade de se unir à direita religiosa para ganhar espaço político. Tratava-se de sacrificar o acessório (isto é, todo o conjunto das liberdades individuais) para garantir o principal, a santidade da propriedade privada.
Mas, ao mesmo tempo, há mais do que oportunismo. Uma vasta literatura vai identificar as afinidades eletivas entre o ultraliberalismo econômico e o ultraconservadorismo. Um dos livros mais influentes neste sentido é In the ruins of neoliberalism, de Wendy Brown, publicado em 2019. Ela acredita que a questão se desvenda a partir dos escritos de Friedrich Hayek, que seria um conservador da linhagem de Edmund Burke, para quem o mercado se justifica menos em termos racionais e mais por seu caráter tradicional. A partir daí, ela entende que o neoliberalismo inclui, de maneira complementar, uma esfera do homo œconomicus e outra da família patriarcal.
Embora influente, o veredito de Brown é pouco convincente. Ela não justifica a escolha de Hayek como detentor do “segredo” do casamento entre neoliberalismo e conservadorismo. Na verdade, o subtexto burkeano na defesa do mercado não é tão frequente no discurso neoliberal, seja entre formuladores doutrinários, seja no discurso político corrente. Por isso, são mais interessantes caminhos como o adotado por uma obra anterior – Family values, de Melinda Cooper, de 2017, que Brown, aliás, cita amplamente. Em vez de procurar um teórico que estabelece a doutrina fundadora, Cooper trabalha com autores por vezes menores, mas que foram capazes de influenciar mais diretamente a formulação das políticas. Ela percebe, assim, que a relação entre as duas correntes não é de antagonismo latente, nem de colaboração contingente (dada, por exemplo, a utilidade da família tradicional para suprir as necessidades que o refluxo do Estado social deixava a descoberto). Na sua leitura, conservadores mudam de atitude em relação ao Estado de bem-estar social a partir do momento em que, sob o influxo dos movimentos feminista e gay e lésbico, sua vinculação com a família tradicional deixou de ser automática. Neoconservadores passam, assim, a convergir com neoliberais na elaboração de uma crítica moral às políticas sociais. Para uns, elas promoveriam o hedonismo e dilapidariam os laços naturais de cuidado e de hierarquia próprios da família. Para outros, incentivariam a preguiça e deixariam de premiar o mérito individual.
Quinn Slobodian dá uma contribuição à discussão com seu novo livro, Hayek’s bastards, lançado no começo deste ano. Nascido no Canadá, professor de história na Universidade de Boston, o autor é conhecido sobretudo por seu livro Crack-up capitalism, de 2023, publicado no Brasil no ano seguinte como Capitalismo destrutivo. Nele, é analisada a proliferação de zonas econômicas especiais, verdadeiros paraísos para o capital, nos quais os direitos trabalhistas, regras ambientais e formas de tributação estão suspensas. Elas são uma realização do sonho anárquico capitalista de ausência de regulação estatal e vistas, por alguns “visionários”, como um modelo para o futuro. Segundo levantamento do livro, são milhares, espelhadas pelo mundo afora – quase metade delas, diga-se de passagem, em território chinês (algo que os devotos de Xi Jinping na esquerda não gostam de lembrar).
No novo livro, Slobodian analisa vertentes do pensamento neoliberal que são endogenamente vinculadas a elementos do discurso de uma extrema-direita que, em geral, é vista como filiada a outras linhagens. Os “bastardos de Hayek” a que se refere no título são economistas e filósofos, muitas vezes vinculados à Sociedade de Mont Pèlerin (que congrega, desde a primeira metade do século passado, os nomes centrais do pensamento neoliberal), e que abraçam posições abertamente misóginas e racistas. A tese é que a nova extrema-direita emergiu de dentro do neoliberalismo, não em oposição ou como alternativa ou complemento a ele. Assim, é necessário superar a narrativa, corrente em certos círculos, de que a nova extrema-direita se opõe ao fundamentalismo de mercado do neoliberalismo, evocando valores como “povo” e soberania nacional. Na verdade, existem encadeamentos importantes entre esta nova direita e o neoliberalismo canônico (para além de sua aliança eventual).
Em suma: de Paulo Guedes a Damares Alves e a Gustavo Gayer não há solução de continuidade.
A narrativa que Slobodian constrói não é simplista. Ele reconhece que, em meio à notável ausência de sérios rachas no neoliberalismo, uma ruptura importante ocorreu nos anos 1960, quando líderes da Sociedade de Mont Pèlerin se estranharam com o importante economista alemão Wilhelm Röpke por sua “defesa estridente” do apartheid sul-africano e sua adesão a teorias do racismo biológico. Mas Murray Rothbard, por outro lado, fundava seu credo anti-igualitário nas diferenças biológicas: ele escreveu que o “igualitarismo é uma revolta contra a natureza”. Entre elas, dava destaque à diferença racial, aprofundando ideias que já eram encontradas na obra de Ludwig von Mises.
Mas, ao mesmo tempo, o livro não vai muito além de uma coleção de exemplos, muito bem contados, que mostram as afinidades de vários corifeus do neoliberalismo com o determinismo biológico e o racismo. Algumas simplificações são derrubadas, mas pouco se avança na construção de um retrato coerente que as substitua. É uma sensação parecida, aliás, à que fica da leitura de seu livro anterior.
No último dos cinco capítulos, Slobodian analisa o apego de muitos ultraliberais e extremistas de direita aos metais preciosos – ficamos sabendo que a origem do AfD, o partido neonazista alemão, foi o movimento de oposição ao euro e que alguns de seus líderes defendiam um lastro “natural” da moeda em metais preciosos. Interessante, mas a relação com o restante do livro é nebulosa. O autor ainda tenta fazer a ponte, apresentando, como conclusão de sua empreitada, a ideia de que a extrema-direita oferece “maneiras de administrar um futuro desconhecido”, uma segurança definida em termos de homogeneidade racial e da presença de um alicerce material, metálico, para o dinheiro.
Não é convincente. Talvez a melhor lição do livro seja a compreensão de que o neoliberalismo e a extrema-direita contemporânea são fenômenos complexos e que é ocioso tentar enquadrá-los em uma narrativa única.

Quinn Slobodian – Hayek’s bastards: the neoliberal roots of the populist right. London: Allen Lane, 2025.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
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