O chamado PL da Dosimetria evidencia como a legalidade pode ser manipulada como invólucro para desvirtuar a própria função constitucional da lei. Sob a roupagem de uma reforma do sistema penal, o projeto veste um arremedo de anistia branda e disfarçada que combina dois vícios graves: de um lado, o desvio de finalidade legislativa, ao […]
Marcelo Camargo/Agência BrasilO chamado PL da Dosimetria evidencia como a legalidade pode ser manipulada como invólucro para desvirtuar a própria função constitucional da lei. Sob a roupagem de uma reforma do sistema penal, o projeto veste um arremedo de anistia branda e disfarçada que combina dois vícios graves: de um lado, o desvio de finalidade legislativa, ao produzir uma norma dirigida a beneficiar destinatários certos que atentaram contra a democracia brasileira; de outro, a invasão da esfera jurisdicional, ao pretender substituir o juízo técnico dos tribunais por comandos legislativos voltados a reescrever o julgamento do 8 de janeiro. A lei formal, aqui, serve para ocultar um conteúdo golpista — um golpe que, derrotado nas ruas e nos tribunais, tenta agora se renovar pela via legislativa.
Embora seu texto se apresente como uma reforma da lei penal, o contexto político de sua elaboração revela outra finalidade: reagir às condenações pelos atos de 8 de Janeiro, especialmente à situação jurídica do ex-presidente da República. As declarações públicas do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e do relator do projeto de lei, Paulinho da Força, que admitiram que o projeto foi concebido para beneficiar Jair Bolsonaro — e chegaram inclusive a expor uma “conta de chegada” para justificar quanto tempo ele precisaria cumprir em regime fechado antes de progredir —, expõem que a norma tem destinatário certo desde a origem. Para completar o enredo, Flávio Bolsonaro anunciou sua pré-candidatura à Presidência da República afirmando que havia um “preço” para retirá-la, e, aparentemente, parte do Congresso apressou-se em fazer o Pix para pagar esse preço, convertendo a função legislativa em moeda de transação política.
Quando uma lei é direcionada a indivíduos determinados, ela deixa de se comportar como lei no sentido próprio e passa a assumir a feição de uma lei de matéria administrativa — um ato legislativo que deve ser analisado como conduta administrativa, sujeita à investigação de seus motivos e finalidades. Isso significa que sua validade não depende apenas da conformidade formal, mas da legitimidade da finalidade para a qual foi criada. E, no caso, a finalidade não é aperfeiçoar a política penal, ajustar parâmetros de sanção ou atualizar critérios gerais de execução da pena. A finalidade é outra: beneficiar pessoas específicas que atentaram contra o Estado democrático de Direito e já foram julgadas pelo Poder Judiciário, impondo a revisão de sentenças já proferidas e transitadas em julgado. Nesse movimento, a lei deixa de inovar primariamente a ordem jurídica e passa a substituir o juízo de justiça que cabe exclusivamente aos tribunais.
É nesse ponto que se configura a inconstitucionalidade material por desvio de poder. A competência legislativa deveria ser exercida para formular normas gerais e impessoais, mas foi utilizada para proteger indivíduos condenados por atentados contra a democracia e reverter, por via normativa, o resultado de processos penais específicos. Essa contaminação da finalidade transforma o PL da Dosimetria em um ato de abuso de poder legislativo: a lei é instrumentalizada não para reger a coletividade, mas para intervir no destino jurídico de beneficiários pré-determinados. Trata-se, portanto, de um abuso de poder mediante desvio da própria função legislativa — e, por isso, de uma modalidade grave de violação constitucional.
A segunda inconstitucionalidade do PL da Dosimetria decorre de violação direta ao princípio da separação e independência dos poderes. A Constituição estabelece que ao Legislativo cabe inovar primariamente a ordem jurídica por meio de normas gerais, e ao Judiciário cabe exercer o juízo de justiça na aplicação concreta do direito. O que o projeto faz, porém, é ultrapassar esse limite de maneira indevida. Em vez de produzir uma mudança normativa voltada ao futuro, o PL passa a condicionar a atuação judicial, pretendendo determinar como o juiz deve interpretar e aplicar a lei nos processos decorrentes dos atos de 8 de janeiro. Trata-se de um caso típico de interferência legislativa no domínio exclusivo do Poder Judiciário. Um poder busca ocupar o espaço institucional do outro, comprometendo o equilíbrio que sustenta a tripartição funcional do Estado brasileiro.
Tal usurpação se dá pela inclusão do artigo 359-M-A ao Código Penal, cuja redação proposta afirma que, “ainda que existente desígnio autônomo”, o julgador deverá aplicar o concurso formal próprio aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, afastando casuística e excepcionalmente a incidência das regras gerais do concurso de crimes. Em termos simples: o Parlamento pretende obrigar o juiz a tratar como uma única ação aquilo que, pela técnica penal, pode configurar pluralidade de condutas, contextos e desígnios. Essa imposição não traduz uma legítima opção de política criminal, constitui um comando dirigido à atividade jurisdicional para reconfigurar, por via legislativa, a qualificação jurídica e a dosimetria das penas aplicadas aos envolvidos na tentativa de golpe. A lei, aqui, deixa de funcionar como norma geral e passa a operar como imposição concreta para revisão de decisões judiciais definitivas.
Essa operação viola os princípios constitucionais da independência dos poderes e da tripartição de funções. Não cabe ao Legislativo controlar a interpretação judicial da lei nem substituir o juízo técnico que compete exclusivamente aos tribunais. A separação de poderes não é um artifício retórico, mas uma garantia estrutural do Estado de Direito: impede que maiorias circunstanciais utilizem o processo legislativo para reescrever sentenças ou para impor ao Judiciário soluções hermenêuticas escolhidas por conveniência política. Ao pretender fixar um resultado interpretativo obrigatório — e declaradamente orientado para beneficiar golpistas condenados pela Justiça —, o PL da Dosimetria converte o Parlamento em instância revisora do Supremo Tribunal Federal. É nessa invasão do núcleo da função jurisdicional, mediante um ativismo legislativo desvirtuado, que reside sua segunda inconstitucionalidade material.
O PL da Dosimetria, longe de representar um ajuste técnico da lei penal, opera como a mais recente tentativa de reabilitar pela via legislativa aquilo que foi repelido pelas urnas, pelas ruas e pelos tribunais. O golpismo, derrotado quando buscou violência e tumulto, reaparece neste projeto com novas vestes, agora amparado na linguagem da legalidade. Cabe às instituições e à sociedade recusar esse engodo normativo. Pois a democracia só resiste quando não permite que o golpe alcance, na letra da lei, o que não conseguiu tomar pela força.
Publicado originalmente por: Conjur
Embora seu texto se apresente como uma reforma da lei penal, o contexto político de sua elaboração revela outra finalidade: reagir às condenações pelos atos de 8 de Janeiro, especialmente à situação jurídica do ex-presidente da República. As declarações públicas do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e do relator do projeto de lei, Paulinho da Força, que admitiram que o projeto foi concebido para beneficiar Jair Bolsonaro — e chegaram inclusive a expor uma “conta de chegada” para justificar quanto tempo ele precisaria cumprir em regime fechado antes de progredir —, expõem que a norma tem destinatário certo desde a origem. Para completar o enredo, Flávio Bolsonaro anunciou sua pré-candidatura à Presidência da República afirmando que havia um “preço” para retirá-la, e, aparentemente, parte do Congresso apressou-se em fazer o Pix para pagar esse preço, convertendo a função legislativa em moeda de transação política.
Quando uma lei é direcionada a indivíduos determinados, ela deixa de se comportar como lei no sentido próprio e passa a assumir a feição de uma lei de matéria administrativa — um ato legislativo que deve ser analisado como conduta administrativa, sujeita à investigação de seus motivos e finalidades. Isso significa que sua validade não depende apenas da conformidade formal, mas da legitimidade da finalidade para a qual foi criada. E, no caso, a finalidade não é aperfeiçoar a política penal, ajustar parâmetros de sanção ou atualizar critérios gerais de execução da pena. A finalidade é outra: beneficiar pessoas específicas que atentaram contra o Estado democrático de Direito e já foram julgadas pelo Poder Judiciário, impondo a revisão de sentenças já proferidas e transitadas em julgado. Nesse movimento, a lei deixa de inovar primariamente a ordem jurídica e passa a substituir o juízo de justiça que cabe exclusivamente aos tribunais.
Usurpação
É nesse ponto que se configura a inconstitucionalidade material por desvio de poder. A competência legislativa deveria ser exercida para formular normas gerais e impessoais, mas foi utilizada para proteger indivíduos condenados por atentados contra a democracia e reverter, por via normativa, o resultado de processos penais específicos. Essa contaminação da finalidade transforma o PL da Dosimetria em um ato de abuso de poder legislativo: a lei é instrumentalizada não para reger a coletividade, mas para intervir no destino jurídico de beneficiários pré-determinados. Trata-se, portanto, de um abuso de poder mediante desvio da própria função legislativa — e, por isso, de uma modalidade grave de violação constitucional.
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| Pedro Serrano, constitucionalista / Spacca |
A segunda inconstitucionalidade do PL da Dosimetria decorre de violação direta ao princípio da separação e independência dos poderes. A Constituição estabelece que ao Legislativo cabe inovar primariamente a ordem jurídica por meio de normas gerais, e ao Judiciário cabe exercer o juízo de justiça na aplicação concreta do direito. O que o projeto faz, porém, é ultrapassar esse limite de maneira indevida. Em vez de produzir uma mudança normativa voltada ao futuro, o PL passa a condicionar a atuação judicial, pretendendo determinar como o juiz deve interpretar e aplicar a lei nos processos decorrentes dos atos de 8 de janeiro. Trata-se de um caso típico de interferência legislativa no domínio exclusivo do Poder Judiciário. Um poder busca ocupar o espaço institucional do outro, comprometendo o equilíbrio que sustenta a tripartição funcional do Estado brasileiro.
Tal usurpação se dá pela inclusão do artigo 359-M-A ao Código Penal, cuja redação proposta afirma que, “ainda que existente desígnio autônomo”, o julgador deverá aplicar o concurso formal próprio aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, afastando casuística e excepcionalmente a incidência das regras gerais do concurso de crimes. Em termos simples: o Parlamento pretende obrigar o juiz a tratar como uma única ação aquilo que, pela técnica penal, pode configurar pluralidade de condutas, contextos e desígnios. Essa imposição não traduz uma legítima opção de política criminal, constitui um comando dirigido à atividade jurisdicional para reconfigurar, por via legislativa, a qualificação jurídica e a dosimetria das penas aplicadas aos envolvidos na tentativa de golpe. A lei, aqui, deixa de funcionar como norma geral e passa a operar como imposição concreta para revisão de decisões judiciais definitivas.
Engodo normativo
Essa operação viola os princípios constitucionais da independência dos poderes e da tripartição de funções. Não cabe ao Legislativo controlar a interpretação judicial da lei nem substituir o juízo técnico que compete exclusivamente aos tribunais. A separação de poderes não é um artifício retórico, mas uma garantia estrutural do Estado de Direito: impede que maiorias circunstanciais utilizem o processo legislativo para reescrever sentenças ou para impor ao Judiciário soluções hermenêuticas escolhidas por conveniência política. Ao pretender fixar um resultado interpretativo obrigatório — e declaradamente orientado para beneficiar golpistas condenados pela Justiça —, o PL da Dosimetria converte o Parlamento em instância revisora do Supremo Tribunal Federal. É nessa invasão do núcleo da função jurisdicional, mediante um ativismo legislativo desvirtuado, que reside sua segunda inconstitucionalidade material.
O PL da Dosimetria, longe de representar um ajuste técnico da lei penal, opera como a mais recente tentativa de reabilitar pela via legislativa aquilo que foi repelido pelas urnas, pelas ruas e pelos tribunais. O golpismo, derrotado quando buscou violência e tumulto, reaparece neste projeto com novas vestes, agora amparado na linguagem da legalidade. Cabe às instituições e à sociedade recusar esse engodo normativo. Pois a democracia só resiste quando não permite que o golpe alcance, na letra da lei, o que não conseguiu tomar pela força.
Fernando Hideo Lacerda
é bacharel, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e da Escola Paulista de Direito.
Pedro Estevam Serrano
é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, com pós-doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e em Direito Público pela Université Paris Nanterre, professor de Direito Constitucional na graduação e de Teoria Geral do Direito no mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da PUC-SP.
Publicado originalmente por: Conjur

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