Sem sentinela e conscientização, continuaremos a escrever nossas tragédias em capítulos repetidos, como uma crônica que nunca chega ao fim

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Era 1975 e vivíamos sob os auspícios da ditadura, em que, principalmente em Brasília, a liberdade de expressão era muito restrita. A sala de calouros do curso de Economia da UDF parecia um anfiteatro de destinos, onde cada estudante trazia na voz a sua compreensão de um país inteiro. O professor, como um oráculo de giz e silêncio, lançou a pergunta que ainda ressoa como trovão: “Qual é o maior problema do Brasil?”
As respostas vieram como pássaros desordenados: inflação, burocracia, falta de indústria, o povo e tantas outras questões que afetavam a sociedade naquele momento. Mas dentro de um livro que o mestre carregava nas mãos repousava a sentença que ele tinha em mente, como pedra no meio do caminho: a falta de fiscal.
O Brasil era então uma casa com muitas portas e janelas, todas trancadas por leis e decretos, mas sem sentinela. O “jeitinho brasileiro” era o vento que entrava pelas frestas, rearrumando móveis, apagando rastros, fingindo ordem. A ausência de fiscalização não era apenas descuido, mas também conveniência: o regime preferia o silêncio ao controle, pois fiscalizar significaria revelar suas próprias mazelas e contradições.
Cinquenta anos depois, o cenário mudou de figurino, mas não de enredo. O que era problema local rompeu fronteiras e alcançou o mercado global. A ditadura deu lugar à democracia. O giz virou tela digital, os carimbos se dissolveram em algoritmos, e as fraudes aprenderam a falar a língua das máquinas. Ontem, Mesbla, Capemi, Banco Nacional e tantos outros escândalos. Hoje, Lojas Americanas, Ambipar, Master. Ontem, o carimbo e a pasta 007. Hoje, o algoritmo e a blockchain.
O país é como um navio reluzente, com bússola de última geração, mas sem vigias no convés. Avança em mares turvos, e os icebergs da corrupção continuam à frente, silenciosos, inevitáveis. Convivemos com o pior que já existiu no parlamento, onde os interesses de grupos dominantes são priorizados em detrimento dos propósitos da sociedade, em conchavos vergonhosos feitos na calada da noite, como vimos em diversos episódios recentes, como a PEC da blindagem, dosimetria de penas para golpistas, interferência em outros poderes e proteções desmazeladas de fugitivos condenados e antipatriotas.
Os mecanismos de controle da sociedade consumidora avançaram nos últimos tempos, principalmente a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor, em 1990. Árvore que deveria ter raízes profundas, cresce frondosa na superfície, mas não suficiente para suportar os golpes dos ventos do mercado. Com o poder imperioso da Faria Lima, escândalos terminam em pizza, políticas públicas se fragmentam como espelhos quebrados, fóruns estruturados para buscar soluções para proteção da natureza e da vida se transformam em balcão de negócios.
Enquanto isso, facções, milícias e outras organizações criminosas tecem suas teias, lavam dinheiro em postos de gasolina, fundos de investimentos e criptomoedas, nas barbas das autoridades, transformando ilicitos em mercadorias que movimentam a Faria Lima, por meio da contravenção. O cidadão comum, perdido nesse labirinto, só percebe o golpe quando já se encontra na condição de refém, como quem descobre a armadilha depois de ouvir o estalo da porta.
O fiscal, que nunca veio é o personagem ausente da nossa história. E quando aparece, é intempestivo. Muitas vezes os sistemas de controle são tratados para não funcionar, transformando o Brasil (e quiçá, o mundo) em um teatro onde todos fingem: o empresário finge que cumpre a legislação; o político cria leis com jabutis direcionados a seu grupo de interesse; os órgãos de controle fingem que fiscalizam, mas nem sempre têm os instrumentos ou recursos adequados; o povo finge que acredita, se divide e acaba se conformando com os desdobramentos, alimentado por fake news e conteúdos divulgados nas redes sociais pelos superstars colocados no parlamento.
No Brasil, a balança da lei pesa mais para quem carrega pouco. O “ladrão de galinha” é sempre alvo fácil das autoridades! O pequeno comerciante é multado por falta de alvará! Enquanto isso, grandes corporações, emaranhadas em confusas e propositais estruturas societárias, suportadas por auditorias de grife, escondem bilhões em balanços maquiados e sonegam tributos de toda ordem na vista dos órgãos de controle. Criamos algoritmos que vigiam cada clique, mas não vigiam os cofres aquinhoados das grandes corporações e instituições públicas. A tecnologia e seus sofisticados recursos viraram espelho: reflete as falhas, mas não as corrige.
Está passando da hora de reinventarmos o fiscal e criar meios para que os sistemas de controle não sejam apenas de agentes do Estado, mas também de ações da consciência coletiva. Com as ferramentas de IA e investimentos em educação, poderemos ter fiscais que sejam ao mesmo tempo algoritmos e cidadãos, lei e cultura, presentes nas atitudes que balizam o comportamento de cada um. Porque sem sentinela e conscientização, continuaremos a escrever nossas tragédias em capítulos repetidos, como uma crônica que nunca chega ao fim, ecoando sempre as mesmas perguntas: quem controla o mercado? quem vigia o Brasil?
A resposta, contudo, não virá apenas da vigilância, mas da garantia de investimentos em educação, que emancipa, e na assistência básica à saúde, que dignifica, além da adequada instrumentalização das organizações do Estado, para atender as necessidades da sociedade. São essas alavancas que podem nos retirar do marasmo histórico, formando cidadãos críticos e saudáveis, capazes de vigiar não apenas o Estado, mas também a si próprios e à coletividade, escrevendo novos capítulos, onde a crônica deixa de ser tragédia e se torna projeto de futuro.
Edson Monteiro – Economista, ex-Diretor Presidente da COOPERFORTE e ex-Vice-Presidente do Banco do Brasil
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Publicado originalmente por: GGN
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