Ir para a rua hoje, ocupar e resistir tem a importância que teve a luta pelas Diretas e a Constituinte nos anos 80.
por: Saul Leblon
No Brasil dos anos 80, como agora depois do golpe, a discussão sobre o país e o seu desenvolvimento estava interditada.
A pauta dominante era a impossibilidade da sociedade comandar o seu desenvolvimento.
Pelas leis de mercado, o país se reduzira a um pedaço de crosta terrestre à deriva.
Condenada
ao degredo econômico, a população chapinhava no lodo político bombeado
por uma ditadura que estrebuchava mas ainda oprimia.
Lembra algo?
Fazer-se próspero, soberano e mais justo como nação era um anseio anacrônico.
A
crise da dívida externa reprimia o debate nacional, servindo de escudo
ao monólogo midiático que invocava o arrocho como fatalidade.
O Brasil era uma conta que não fechava.
Entre
a ditadura agonizante e a ganancia dos credores --que queriam raspar o
tacho antes de entregar a rapadura— a economia esfarelava.
Soa familiar?
Embora os termos da equação sejam distintos, o jogral de hoje é semelhante, com consequências correlatas.
O dinheiro organizado ordena a danação.
Um sinônimo para dinheiro organizado é banco. Ou pátria rentista.
Ramificações
locais e planetária decorrentes da supremacia que a riqueza financeira
exerce no nosso tempo, dão a ela o poder inexcedível de coagir e
chantagear.
Nos anos 80, era preciso espremer a nação para pagar os credores.
A referência era o FMI e suas cartas de intenção.
A PEC 55 é a carta de intenção dos dias que correm.
Nela se detalha a determinação de pagar os rentistas da dívida pública às custas do resto da nação.
Institutos
de pesquisas, universidades, jornalistas e partidos adestrados nessa
missão cuidavam lá, como cuidam agora, de reproduzir diariamente a
sentença que reduzia todas as demais prioridades de um Estado ao valor
zero.
Exceto uma: garantir os juros aos bancos e credores.
Um sistema político esgotado acoplado a uma bomba de sucção financeira implacável garroteava o pescoço brasileiro.
Dessa mistura ácida nasceu a ‘década perdida’ que engordou credores, murchou a sociedade, tornou-a mais desigual e excludente.
O golpe promete ir além.
O que se anuncia agora é a necessidade de duas décadas perdidas.
O
prazo foi inscrito na PEC 55 para debulhar a Carta Cidadã, atropelar o
pacto social de 1988, triturar a CLT, extirpar direitos e conquistas.
O estorvo social deve ser removido para garantir a salvaguarda dos mercados e rentistas.
Há uma diferença importante no conjunto das semelhanças.
Nos anos 80 havia um encadeamento de rupturas internacionais que soprava na mesma direção do sufoco interno.
Só
um gigantesco esforço de mobilização de rua logrou reunir a frente
ampla de interesses capaz de afrontar esse duplo torniquete de
circunstancias adversas.
A soberania das nações e o Estado do Bem Estar Social perdiam espaço na vida dos povos.
Em 1978, Deng Xiaoping abriria a China à interação com o mercado capitalista.
Era uma ruptura geopolítica.
A
gigantesca demografia chinesa que reúne 20% da humanidade
credenciava-se como o principal polo de atração de capitais e
compressão de custos trabalhistas e industriais em todo o planeta.
A
guinada redefiniria a geografia das cadeias industriais,
globalizando-as, bem como os fluxos do investimento, de tecnologia e do
comércio mundial.
Quebrava-se
o circuito que fazia da produção, do consumo, do emprego, dos preços,
do lucro e dos salários uma equação pactuada e gerida no escopo da
soberania nacional.
Um ano depois, em 1979, Margareth Thatcher adicionaria salmoura a esse lombo chicoteado.
Recém
eleita, a ‘Dama de Ferro’ forjava seu epíteto em guerra implacável
contra os sindicatos para consolidar o modelo do Estado mínimo
neoliberal, com desregulação trabalhistas e financeira.
Do outro lado do Atlântico, Paul Volcker assumia a presidência do Fed , o BC dos EUA.
Em
meses, enquanto Thatcher criava o manual anti-trabalhista e Deng
inaugurava uma oficina de baixo custo, Volcker daria um cavalo de pau
altista nos taxas de juros norte-americanas.
A
espiral ascendente garantiria para os EUA a oceânica oferta de
petrodólares acumulados pelo choques de 1973 e 79 e quebraria um a um
os países endividados, entre eles o Brasil.
Em
1980, com a chegada de Reagan à Casa Branca, a geringonça neoliberal
reforçou a fuselagem e decolou para rapinar e mastigar a ordem velha ao
seu redor.
Desprovido de um arcabouço político para resistir, o Brasil foi atropelado e pisoteado.
Entre os anos 70 e 90, o país desembolsou cerca de US$ 280 bilhões em juros e amortizações aos credores externos.
Pior, nos anos 90, sob o comando tucano, fez uma interpretação pueril da globalização neoliberal.
Ancorado
na teoria do ‘desenvolvimento dependente’, trazida pelo sociólogo ao
poder, dobrou-se complacente ao mito da proficiência dos livres
mercados. Terceirizou o destino nacional.
Não renegociou com soberania o gargalo da dívida e ainda abdicou de proteger e renovar a industrialização brasileira.
O populismo do câmbio forte (paridade Real/dólar) permitia importar da oficina asiática a manufatura que aqui morria.
À
corrosão financeira sobrepôs-se, assim, uma ferrugem estrutural até
hoje não revertida, cuja devastação silenciosa na estrutura da sociedade
explica, por exemplo, o fenômeno Trump nos EUA e a ressurgência da
ultra-direita na Europa.
Desindustrialização
é também desinvestimento, desemprego, declínio de polo irradiador de
produtividade e inovação, mingua de excedente econômico para expandir
infraestrutura, direitos sociais e cidadania.
O
martírio imposto agora ao país em nome do ajuste fiscal reproduz em
outra chave a mesma lógica dos anos 80, ordenada por interesses
correlatos, com um upgrade de sucateamento industrial que pode selar o
obsoletismo nacional nesse esfera.
A
revogação do conteúdo nacional no pre-sal, com a renúncia ao
derradeiro impulso tecnológico capaz de engatar a economia à quarta
revolução industrial (a da precisão e integração digital de cadeias e
processos ) esboça esse crepúsculo sem volta.
Uma dissonância importante ocorre no plano externo.
Como
nos anos 80, assiste-se também a uma ruptura no horizonte
internacional, mas com sinal invertido, o que expõe a natureza
anacrônica da restauração neoliberal brasileira.
Trump não é um Roosevelt de topete.
Mas
tudo o que ele simboliza, atrai e ameaça desenha uma rota de colisão
com a restauração neoliberal tardia abraçada no ambiente tropical.
Trump
é a resposta do extremismo conservador ao esgotamento do establishment
neoliberal, em meio ao vácuo de alternativas num campo progressista
colonizado pela religião dos livres mercados.
O anseio por igualdade, emprego, futuro, direitos, segurança, identidade é um enredo à procura de um projeto .
Trump
ocupa o nada entre o velho e o novo (leia o Especial de Carta Maior
sobre o impacto de sua ascensão), com a guarnição de morbidez que os
pratos requentados da história incluem.
Seu
protecionismo (quer taxar em 45% a manufatura chinesa), a promessa de
investir US$ 1 trilhão em obras --e a consequente alta dos juros que
isso encerra, estraçalham a ilusão golpista de reeditar , em uma
encruzilhada de mecânica parecida com a dos 80, mas de natureza
distinta, a panaceia privatizante e dependente dos 90.
O risco de se insistir no mesmo projeto em uma ordem global de natureza distinta adverte também o campo progressista.
Amortecido
na última década pelo super-ciclo de commodities e juros baixos, o
conflito social explode agora enrijecido, em uma disputa ainda mais
politizada contra uma direita ascendente, pelo comando do
desenvolvimento e a destinação dos recursos fiscais.
A
luta pelas Diretas e pela Constituinte nos anos 80 logrou à sociedade
um espaço de legitimidade para crescer e expandir direitos, a
contrapelo da ascensão neoliberal, e que estendeu seu fôlego até quase
o final do ciclo de governos do PT –com um saldo de ganhos e perdas
sabido.
Ir
para a rua hoje, ocupar praças, escolas, locais de trabalho tem a mesma
importância que a luta pelas Diretas e pela Carta Cidadã teve em 1984 e
1988.
Trata-se de quebrar a rigidez das circunstâncias econômicas com o peso dos interesses históricos da maioria da população.
A ferramenta organizativa capaz de fazer isso hoje no Brasil chama-se frente ampla.
Carta Maior

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