Mário Magalhães

Fez tanto calor em 27 de março de 1968 que muitos cariocas, sentindo-se como um sorvete do Morais derretendo, desconfiaram da temperatura máxima certificada pela meteorologia: 37,4 graus em Bangu. Parecia mais, e os 80 novos casos de desidratação contabilizados pelos hospitais do Rio lastreavam a suposição. O sufoco tinha data para acabar. Previa-se para a noite do dia 28 a chegada de uma frente fria.

Março demorara um pouquinho mais para começar. Um dia, porque o ano era bissexto. E uma hora, porque a “hora de verão”, como se falava, expirara à meia-noite de 29 de fevereiro, quando os ponteiros voltaram sessenta minutos. O mês vindouro seria, no Brasil, o estopim das maiores conflagrações de 1968. A bomba, ou a tragédia, explodiria no então Estado da Guanabara.

Cinquenta anos atrás, o mês começou no Rio com a costumeira crônica bipolar de promessa de vida e fim do caminho. O Maracanãzinho fervilhou no dia 1º, aniversário da cidade, com a apuração do desfile das escolas de samba, blocos, frevos, ranchos e sociedades. Revelou-se uma bicampeã, a Mangueira, seis pontos de vantagem sobre o vice, o Império Serrano.

Dali a horas, as águas de março alagaram as ruas e castigaram sobretudo a Lapa e os bairros da Zona Norte. Um buraco abriu em Quintino, e um homem morreu afogado ao cair nele. Em Madureira, um carro despencou ao se chocar com outro, e a correnteza do rio Ninguém engoliu um passageiro.

Os cariocas se debatiam com um surto de gripe e, em Copacabana, com os ataques de abelhas africanas inquilinas da abóbada do Cine Roxy. Perturbava-os outro perrengue, o arrocho promovido pelo governo. O poder aquisitivo no Rio despencara 40% em 1967, calculou a Fundação Getulio Vargas.

Não à toa, periclitava na cidade-Estado a aprovação ao presidente da República, o ditador Arthur da Costa e Silva. Para 72% dos cidadãos, verificou pesquisa Marplan, o governo era péssimo, ruim ou regular. E olha que muita gente temia responder aos entrevistadores o que de fato pensava. Desde 1964 a ditadura asfixiava o Brasil.

Em março, o governo renovou a proibição de várias peças de teatro e vetou outras. O marechal Costa e Silva se envaideceu por censurar “Santidade”, de José Vicente de Paula. Julgou-a “forte”. A Polícia Federal desautorizou a montagem de “Barrela”, de Plínio Marcos. O ministro da Justiça, Gama e Silva, barrou “Cordélia Brasil”, de Antônio Bivar.

Em protesto, os artistas acamparam dia 18 nas escadarias do Teatro Municipal. Não fizeram forfait Norma Bengell, Hugo Carvana, Odete Lara, Cláudio Marzo, Tônia Carrero, Dias Gomes, Joana Fomm e Miriam Pérsia.

Os estudantes davam o seu recado. Em janeiro, 14 haviam ido em cana ao se manifestar contra a gororoba do restaurante Calabouço, que servia refeições para jovens com grana curta. Dias depois, a garotada identificou um espião do Dops campanando-a e o botou para correr.

Em São Paulo, Maceió, Rio e outras cidades, passeatas reivindicavam aumento de vagas nas universidades. Estudantes ocuparam a reitoria da USP. No dia 27, alunos da UNB entraram e ficaram num prédio de apartamentos da universidade. Buscavam um abrigo menos imundo e inóspito do que os cubículos do Centro Olímpico destinados a eles.

Desde a deposição do presidente constitucional João Goulart os sindicatos, sob o controle ou não de pelegos, estavam mais vigiados e imobilizados do que gado confinado. Sindicalistas tinham sido afastados, cassados e presos. Entidades de trabalhadores anunciaram em março a intenção de sair às ruas em defesa dos salários.

No que restava de política institucional, a altivez sobrevivia. No dia 8, os membros da CPI da Câmara sobre ensino superior expulsaram um agente da polícia política que tentava gravar o depoimento do estudante Honestino Guimarães (mais tarde, a ditadura mataria o militante estudantil e sumiria para sempre com seu corpo).

Em 23 de março, arapongas paulistas estimaram em 3.500 os presentes num comício da Frente Ampla em São Caetano do Sul. Lideravam o movimento os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, cassado, e João Goulart, cassado e exilado, e o ex-governador Carlos Lacerda.

De arauto do golpe, Lacerda passara à oposição à ditadura. Único do trio dirigente no palanque de São Caetano, ele discursou: “Não precisamos temer, nem precisamos ser bicho-papão de ninguém. Não temos medo do Exército inteiro, e muito menos de meia dúzia de oficiais”.

Àquela altura, 1968 já ardia mundo afora. Os vietcongs haviam lançado em janeiro a Ofensiva do Tet, contra as tropas dos Estados Unidos e seus aliados do Vietnã do Sul. Em 16 de março, soldados norte-americanos trucidaram centenas de civis vietnamitas, na infâmia que passou à história como Massacre de My Lay.

Por igualdade e liberdade, estudantes lutavam contra governos de tons diversos, do Equador à França, do México à Polônia, da Espanha à Rodésia (atual Zimbábue). Na Tchecoslováquia, um novo chefe do Partido Comunista, Alexander Dubcek, empenhava-se em amalgamar socialismo e democracia. Florescia a Primavera de Praga.

Chegara a hora do Brasil, no dia 28 de março.

“Polícia assassina!”

O estopim foi uma bala mortal disparada no peito do estudante Edson Luís de Lima Souto, logo depois do pôr do sol. Ele tinha 18 anos, era paraense e ganhava a vida faxinando restaurantes. Cursava o equivalente hoje ao ciclo do ensino fundamental que vai do 6º ao 9º ano. Comia no Calabouço, onde um choque da Polícia Militar atacou comensais que se manifestavam por melhorias na cozinha e nas instalações.

O general Osvaldo Niemeyer, da Superintendência da Polícia Executiva da Guanabara, alegou, conforme registro do “Jornal do Brasil”:

“A polícia estava inferiorizada em potência de fogo”.

Um repórter indagou: “Potência de fogo? É arma?”

Niemeyer: “É tudo aquilo que nos agride. Era pedra”.

O general da Idade da Pedra viria a culpar pela morte o aspirante Aluísio Azevedo Raposo, que comandava o choque. O responsável fora o general, por ter insistido em reprimir os jovens, reagiria o aspirante. No país da impunidade, ninguém foi punido.

O corpo de Edson Luís foi levado pelos estudantes até a Santa Casa, a centenas de metros do Calabouço. Confirmado o óbito, carregaram-no nos braços até a sede da Assembleia Legislativa, na Cinelândia, onde hoje funciona a Câmara Municipal. Gritavam “Polícia assassina!”. Universitários decretaram greve nacional. Na PUC do Rio, pela primeira vez aprovaram por unanimidade uma greve em todas as unidades.

Edson Luís, estudante assassinado pela ditadura em março de 1968, é velado por colegas; ele foi morto quando policiais militares atiraram contra jovens que participavam de protesto contra as condições do restaurante Calabouço, no Rio.
A notícia alcançou os teatros durante as sessões, encerradas no meio. Ao informar ao público o motivo, os artistas foram aplaudidos de pé. Diziam: “Mataram um estudante. Ele podia ser seu filho”. Naquela noite, no Teatro Toneleros, não houve chance para o bis do Quarteto em Cy: uma nova canção de Tom e Chico, “Retrato em branco e preto”. De peruca, disfarçado na plateia, estava o guerrilheiro Carlos Marighella. Oito meses depois, o governo o declararia inimigo público número um.

“Os velhos no poder, os jovens no caixão”.
No velório, os estudantes cobriram o corpo de Edson Luís com bandeiras dobradas do Calabouço e do Brasil. Seu peito ficou nu, expondo a perfuração. O rosto de menino lembrava o de Garrincha quando jovem. Deixaram junto ao cadáver uma folha em que se lia: “Esta é a justiça da ditadura. Pedimos comidas e eles atiram contra nós”.

Dois funcionários do Instituto Médico Legal apareceram para transportar o morto para a autópsia, nos termos da lei. Os estudantes, em desobediência civil, não permitiram. Antes da meia-noite, a polícia arremessou duas bombas de gás contra a multidão na praça diante da Assembleia. Uma faixa chorou: “Um estudante foi assassinado. Ele poderia ser seu filho”.

De 10 mil a 50 mil pessoas, a depender do chute, acompanharam o cortejo fúnebre na tarde do dia 29. O caixão foi carregado nos ombros de estudantes até o cemitério São João Batista. Ao surgir na porta da Assembleia, lenços brancos se agitaram. Um coro gigantesco cantou o Hino Nacional.

“O povo brasileiro é humilde e ordeiro, mas quando injustiçado – como no episódio da morte do estudante – tem todo o direito de reagir com violência”
Flores foram atiradas do alto dos prédios da Cinelândia. O Cine Império exibia “A noite dos generais”. Uma palavra de ordem frequente foi “O povo organizado derruba a ditadura!” (no meio do ano soaria mais forte “Só o povo armado derruba a ditadura!”). As vozes só não eram mais ruidosas porque as lágrimas as sabotavam. Três bandeiras dos EUA foram queimadas. No cemitério, a massa assoviou a “Valsa do adeus”. Abriram a faixa “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. Na saída, viraram e botaram fogo em um Aero Willys a serviço da Aeronáutica.

Em Belo Horizonte, um ato público mobilizou 10 mil pessoas. Em Brasília, a polícia, ensandecida, não poupou nem parlamentares. Mário Covas, líder da oposição na Câmara, e a deputada Julia Steinbruch levaram golpes de cassetete. Manifestantes destruíram os palanques instalados na capital para o festejo oficial dos quatro anos do golpe.

Um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado a cada 23 minutos. Lamento existe, embora não disseminado. Comoção? Rara ou nenhuma.
O general Jayme Portella de Mello, chefe do Gabinete Militar da Presidência, afiou os dentes: “Temos de ser duros. Não podemos deixar que eles tomem conta da situação”.

O país se comoveu. Alceu Amoroso Lima, pensador católico conhecido como Tristão de Athayde, pregou: “O povo brasileiro é humilde e ordeiro, mas quando injustiçado – como no episódio da morte do estudante – tem todo o direito de reagir com violência”.

Qual seria a reação do Brasil letárgico de 2018 a um assassinato covarde como o de Edson Luís? Difícil dizer, numa época em que a rebeldia em larga escala parece hibernar. Dois anos atrás, uma CPI do Senado concluiu que um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado a cada 23 minutos. Lamento existe, embora não disseminado. Comoção? Rara ou nenhuma.

Antes de março de 1968, cozinhavam-se as tensões em banho-maria. No dia 28 daquele mês, a meteorologia acertou o tempo, não a metáfora. A frente fria atingiu o Rio, mas o clima esquentou na cidade e no Brasil.

Março incendiou o ano. Em abril, a ditadura baniu a Frente Ampla e matou manifestantes. Os protestos engrossaram, e neles se viram muitos que em 1964 haviam marchado ao lado da família com Deus pela liberdade. Os metalúrgicos de Contagem, em Minas, entraram em greve. Em meados do mês, a organização guerrilheira encabeçada pelo ex-deputado Marighella e pelo jornalista Joaquim Câmara Ferreira estreou em assalto a banco, arrecadando fundos para combater a ditadura. O auge do movimento popular seria em junho, com a Passeata dos Cem Mil.

Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, tocados pela desgraça de Edson Luís de Lima Souto, compuseram “Menino”. A canção reverencia o garoto morto e deplora os contemporâneos que calam:

Quem cala sobre teu corpo

Consente na tua morte

Talhada a ferro e fogo

Nas profundezas do corte

Que a bala riscou no peito

Quem cala morre contigo

Mais morto que estás agora

Relógio no chão da praça

Batendo, avisando a hora

Que a raiva traçou

No incêndio repetindo

O brilho de teu cabelo

Quem grita vive contigo.


* A principal fonte jornalística de informações desta coluna foi o “Jornal do Brasil”. Escolhi-o como um modo de desejar boa sorte ao “JB”, que acaba de voltar às bancas.

Foto em destaque: multidão acompanha enterro do secundarista Edson Luís, assassinado pela PM no dia 28 de março de 1968./Folhapress.


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