Progredimos. Em 1964, os militares se autoconvocaram para salvar o Brasil do comunismo, do anarcossindicalismo, do tropicalismo e de outras ameaças à civilização cristã, definidas pelo departamento de estado americano e pelo Magalhães Pinto. Governaram o País durante 20 anos, deixando um rastro de arbítrio e sangue – e, reconheçamos, um passável sistema nacional de comunicação.
Em 2018 um general foi chamado para pôr ordem na bagunça do Rio, com uma missão definida, num local definido e contra um inimigo definido – que em 64 já existia, só não tinha fuzis de assalto.
Ao contrário dos generais de 1964, o general de 2018 não vai se instalar no poder – ou vai, não se sabe, bata na madeira – e seu mandato, também definido, é de um ano. Se o general de agora tiver sucesso sua intervenção pode se expandir no espaço e no tempo, para o resto do País e para 20 anos ou mais.
De qualquer maneira, o golpe de 1964 e o convite para intervir de 2018 refletem a mesma mania nacional de apelar para os militares como uma espécie de instância final antes do caos. Ou o caos, ou eles. Como se o apelo aos militares não fosse um ingrediente do caos e uma evidência de falência.
Não se sabe como será a convivência da população do Rio com as forças de ocupação. Sempre me impressionou o relato que li, certa vez, sobre os últimos dias antes da queda de Berlim, na Segunda Guerra Mundial. As tropas soviéticas avançando pelos arrabaldes da cidade em ruínas, aniquilando os poucos focos de resistência que ainda encontravam – e os serviços públicos do município funcionando normalmente, o leite e o correio sendo entregues como sempre, a não ser em áreas onde os combates eram mais intensos, e a vida seguindo suas rotinas.
Os cariocas sabem como é viver nos arredores de zonas de guerra, que muitas vezes estão do outro lado da rua. Mas as rotinas que convivem com o tiroteio no Rio não são como as surpreendentes rotinas que desprezavam a guerra à sua volta, em Berlim, para conservar uma normalidade possível. No Rio, há rotinas que fatalmente sobreviverão à intervenção, por mais bem-sucedida que esta seja.
Não apenas a rotina da corrupção policial e do indecente oportunismo político, que o general não vai fazer desaparecer, mas a rotina de questões raramente mencionadas, quando se fala em narcotráfico. Como, por exemplo, a outra ponta do comércio de drogas, a dos usuários que a favela abastece. Os que sustentam o mercado mas nunca aparecem, e só morrem de overdose.
Luís Fernando Veríssimo
Contexto Livre