O dia em que o Jornal Nacional (não) noticiou o Brasil fora do mapa da fome
por Letícia Sallorenzo - a Madrasta do Texto Ruim
Vocês me desculpem, mas depois do mestrado peguei o hábito de transformar referencial teórico em nariz de cera. Então, cêis tudo me dá licença porque eu tenho que falar de Teun van Dijk. Esse holandês arretado é linguista e há décadas estuda o racismo nos jornais europeus. Boa parte da produção dele está disponível para download no site dele (ali no menu à direita).
Então, eu já recomendo que vocês baixem o texto “Ideology and discourse”, e vão direto ao capítulo 5. Esse capítulo traz uma verdadeira receita de bolo sobre como manipular um texto para levar informação distorcida ao seu leitor / espectador.
Tô abrindo esse terceiro parágrafo de nariz de cera pra falar que ele parte da premissa de divisão do mundo em “nós X eles”. A partir daí, ele faz uma tabelinha: enfatize coisas boas sobre nós / tire a ênfase de coisas boas sobre eles; tire a ênfase de coisas ruins nossas; enfatize as coisas ruins deles.
Só aí entram praticamente 80% das reportagens produzidas desde o início do século sobre o PT ou outros partidos / organizações de esquerda. Inclusive a nota locutor do JN de 16 de setembro de 2014 que vou lincar agora. (Pronto! Cabou o nariz de cera!)
A missão é: falar que o Brasil fora excluído do mapa da fome da ONU. O anúncio foi feito pela manhã. Como proceder? Quem estuda telejornalismo sabe que existem três formatos de notícia num telejornal: o VT, que consiste no anúncio da reportagem pelo âncora, daí entra o vídeo feito por um repórter, imagens exclusivas, entrevistas etc. É o formato mais completo e mais elaborado de um telejornal; a nota coberta, que é o texto lido pelo âncora enquanto no vídeo passam imagens da notícia. A reportagem é de terceiros, normalmente agências internacionais. E, finalmente, a nota locutor, que é usada em duas ocasiões: quando a notícia chegou de última hora e não tem imagem, ou quando a notícia é irrelevante.
Pois bem. O Jornal Nacional usou uma nota locutor para falar sobre o Brasil fora do mapa da fome. Eu vou lincar o site e vou pedir encarecidamente que você assista ao vídeo. “Ain, eu oteio a Globuan!” Tá, não tô pedindo pra você amar a Globo. Tô pedindo pra você assistir a 37 segundos de vídeo. Depois volta, sim? O link Táqui.
Voltou? Obrigada pelo esforço! Agora, novamente, vamos tomar um suquinho de maracujá pra acalmar esse coraçãozinho repleto de fel, e vem comigo que eu vou destrinchar esse texto de 530 caracteres e 97 palavras, lido em 37 segundos pelo William Bonner:
O Órgão das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura citou o Brasil
[temos um sujeito simples de 11 palavras. Parabéns aos envolvidos. Depois de Unidas, o espectador não ouviu um verbo e reduziu a atenção para a história. Seis palavras depois, o texto usa o verbo citar, acionado por um sujeitão de 11 palavras e o Brasil na função sintática de objeto direto e semântica de tema.
Compare com “O Brasil saiu do mapa da fome, segundo a ONU.” Em sete palavras, a frase disse a que veio. Jogou o que importa lá pro início – estamos falando do Brasil e do que aconteceu com o país – e a ONU ficou pro finalzinho da frase. Mas vamos voltar ao texto original do JN]
como um dos países
[olha que plural sa fa do! Foi um doS paísES, ou seja, teve mais país que conseguiu fazer isso!]
que conseguiram reduzir pela metade o número de pessoas que passam fome.
[pra quem é de humanas e faz miçangas, metade é um troço que era 100 e virou 50, ou, mais simples ainda, um troço que era 2 e virou 1. Mas o JN começa a cuspir números a esmo. Ponham reparo:]
Vinte anos atrás, 14,8% dos brasileiros viviam na miséria. Agora, esse índice é de menos de 2%, cerca de 3,4 milhões de pessoas.
[vinte com quatorze e oito menos dois por cento dá três vírgula quatro milhões e eu tô cantando Gonzagão: “Eu lhe dei vinte mil réis / Prá pagar três e trezentos / Você tem que me voltar / Dezesseis e setecentos!”.
Mas eu sou jornalista, chata, pentelha, mala, irritante e, se tem uma coisa que eu consegui aprender nas aulas de matemática e trago PARA A VIDA é regra de três. Bisservem:
Vinte anos antes dessa reportagem estávamos no ano de 1994. A pesquisa “Brasil 1994 população” no Google nos retorna o valor de 160.260.507 habitantes. Então a gente arredonda pra 160 milhões. 14,8% de 160 é igual a 23,6 milhões de pessoas. (160 está para 100 assim como x está para 14,8. Multiplicando cruzado, X = 14,8 * 160 / 100, ou 23,6 milhões, e eu juro que esse post é sobre língua portuguesa!). O agora, no caso do texto, é em 2014, ano em que a busca do Google “Brasil 2014 população” nos dá o valor de 202,7 milhões, que a gente arredonda pra 200 milhões porque a gente é de humanas e trabalha com vírgulas em orações, não em números. Então, se 200 milhões equivale a 100%, 3,4 milhões equivale a 1,66% da população, ou seja, menos de 2% da população. Mas o JN informa que essa variação de famintos em 20 anos foi uma “redução de mais da metade”. E lá vamos nós pegar a calculadora de novo, e temos que 14,8 – 1,66 = 13,14. E essa variação a gente calcula que 14,8 está para 100 assim como 13,14 está para X. Multiplicando cruzado, temos um X que vale OITENTA E OITO VÍRGULA SETE POR CENTO, e que Nossa Senhora dos Cabeças de Planilha me abençoe e jogue um raio na minha cabeça se eu estiver errada! (spoiler: conferi essas contas com dois economistas, um contador e três jornalistas. Todos chegamos ao mesmo valor. Sete pessoas não podem ter errado as contas!)
Então, tudo bem que 88,7% é mais da metade, mas ele tá mais pra “quase cem por cento” do que pra “mais da metade”, né? E vamos voltar ao texto do JN, que ainda não acabou!]
Segundo a FAO, essa queda se deu por causa da eficiência dos programas de combate à fome. [E voilà! Em 97 palavras, temos S E T E elogiando o governo! Eficiência + dos + programas + de + combate + à + fome. Essa FAO aí entrou de gaiata na história, porque o texto não explica que FAO e “Órgão das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura” são a mesma pessoa! Teve redator do JN que deixou de ler aquele mandamento do telejornalismo da Globo que determina que um texto seja claro, bem explicado e fácil de ser ouvido. “Ah, mas o vídeo mostra os números aparecendo ao lado do Bonner!” É, mostram. E ajudam a visualizar a coisa? Não, né? Mas calma que a treta vandijkiana “desenfatize as coisas boas deles” vai virar inferência sugerida logo na frase abaixo:]
A FAO é dirigida por José Graziano, que implantou o programa Fome Zero durante o governo Lula. [“A FAO só falou isso do Brasil porque o diretor da FAO é petista!” Não, o JN não disse isso, mas a literatura me permite dizer isso. Inferência sugerida, Geis e Zwicky 1971, e Traugott e Dasher 2002, página 5. Links no meu último post. O texto não escreve literalmente a informação, mas sugere que o ouvinte / leitor chegue a essa conclusão. Ou você tem explicação melhor para ESTA informação ter sido acrescentada NESTE PONTO do texto? Ah, vamos voltar ao texto do JN, que o final é digno de Hardy Har Har:]
No mundo, uma em cada nove pessoas ainda está desnutrida. [O Brasil reduziu em “mais da metade” o número de famintos, mas oh dia, oh vida, oh azar, Lippy, uma em cada nove pessoas no mundo ainda está desnutrida! Isso é deprimente, e eu vou ficar com esse gostinho amargo de derrota após essa notícia!]
E foi assim que o mais relevante telejornal do país informou ao Brasil que o país havia saído do mapa da fome. Com um texto medíocre repleto de informações imprecisas e leves pitadas sugeridas de fraude internacional.
Ano que vem, o Jornal Nacional completa 50 anos. O Bonner vai fazer uma série especial sobre como o telejornal cobriu os fatos históricos do país. Quero só ver como eles vão explicar esse embuste. “Jornalismo com correção” que não consegue fazer uma regrinha de três decente!
GGN